O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Tuesday, January 17, 2006

Leitura Matinal -241

O ponto em que se consegue aguentar a canga da vida com aparente sucesso é uma dor intensa que só encontra rival naquela outra do
investimento próprio, sem travagens, cuja falência ou simples activação alimenta o inapelável receio. É uma vida com duas assombrações à espreita, o que tornaria longínqua a hipótese de felicidade, se dela houvesse margem para a crença. Daí as súplicas que querem tremendamente a grande precipitação, condicionadas pelo sentimento de incapacidade.
Mas depressa a outra parte leva a melhor e da certeza sem contraditório do sofrimento surge o desejo de ser coberto pelo grande manto que proteja os sentidos, da sua pressão, como se fosse possível dela proteger a interioridade.

Donde a invocação adaptada, acreditando numa paz suprema diversa da aparência de estabilidade, o ponto em que tudo parece afinal preferível à permanência na corda bamba do espectáculo que fomos dando para o mundo. Mas há uma suprema prevenção a fazer - a de que, inexistindo segurança na alternativa, possa constatar que a escuridão não faz mais, afinal, do que esconder o deserto.
De Henrique Ruivo:

dai o sinal de alarme anjos
dai o sinal de alarme
que já ninguém sabe amar-me

a minha alma é como um arame
onde a vida se equilibra num só dedo
é desse equlíbrio que tenho tanto medo
que possa tombar p´ra que alguém me ame

vinde segurar-me anjos
vinde segurar-me
que a noite tapa-me os olhos em surdina

fico suspenso desta dor voraz
que me desequilibra sobre o ar astral
a noite que me embale serena e maternal
que assim sem dor tudo se desfaz

anjos fechai as vossas asas
deixai-me cair anjos
para que sem dor tudo se desfaça


Pareceram-me adequados: «Anjo Voador», de G. B. Piazetta,
«Dor», de Nathan Glemb e «Noite no Arizona», deGeorge Elbert
Burr.

4 Comments:

  • At 12:06 AM, Blogger Viajante said…

    A referência ao deserto fez-me ir buscar:

    Grandes

    Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
    Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
    Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
    Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
    Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
    Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
    Grandes são os desertos, minha alma!
    Grandes são os desertos.

    Não tirei bilhete para a vida,
    Errei a porta do sentimento,
    Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
    Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
    Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
    Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
    Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
    Senão saber isto:
    Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
    Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

    Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
    Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
    Acendo o cigarro para adiar a viagem,
    Para adiar todas as viagens.
    Para adiar o universo inteiro.

    Volta amanhã, realidade!
    Basta por hoje, gentes!
    Adia-te, presente absoluto!
    Mais vale não ser que ser assim.

    Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
    E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

    Mas tenho que arrumar mala,
    Tenho por força que arrumar a mala,
    A mala.

    Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
    Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
    Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
    A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

    Tenho que arrumar a mala de ser.
    Tenho que existir a arrumar malas.
    A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
    Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
    Sei só que tenho que arrumar a mala,
    E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
    E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

    Ergo-me de repente todos os Césares.
    Vou definitivamente arrumar a mala.
    Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
    Hei de vê-la levar de aqui,
    Hei de existir independentemente dela.

    Grandes são os desertos e tudo é deserto,
    Salvo erro, naturalmente.
    Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

    Mais vale arrumar a mala.
    Fim.

    Álvaro de Campos


    Discordaria do fim, embora não se discorde realmente de um poeta :)
    Desatina-se do tino dele.
    Gosto mais da prevenção a fazer.

     
  • At 7:53 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Senhora:
    A Vossa inclinação para optar por diferente caminho do que o «Fim», aliada à benevolência para com a prevenção, fizeram-me ir procurar - e achar - esta terceira via face a ambas:

    Pocuro amor no deserto das manhãs
    nascidas das florestas do sono
    onde o teu génio ausente
    teima em dormir entre os meus braços

    Reencontro-me para melhor me perder
    nesse naufrágio de imagens passadas
    que preenchem as páginas fazias dos dias

    Perco-me nesses olhos feitos sombra
    nesse sorriso de vento agreste
    onde os longes são permanentes

    António Sem

    Onde Campos via omnipresença e a tal prevenção "risco" (futuro temido), este poema dá-nos a aridez no Presente, assombrado pela memória do que foi(?), que não é constatada no poema comentado, sem dúvida devido a reacção diversa à intensidade da dor.

    Na minha adolescência o heterónimo Campos foi dos primeiros Poetas que amei. Hoje admiro-o. "Il-y-a une difference". Mas creio que ainda é mais acentuada nos homens do que no Maravilhoso Género da minha Interlocutora.
    Beijo.

     
  • At 9:05 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Ah, o título do poema anterior é «LONGE».

     
  • At 10:18 AM, Blogger Esvoaçante said…

    Sorriso, por ambos voltarmos cá (embora o meu intuito fosse "desviar" os poemas)
    Pelo «il-y-a une difference».
    Pela diferença de Género, que nem é exactamente do mesmo estilo.
    Por uma manhã bem começada.

    Beijo, por «longe».

     

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