Leitura Matinal -241
O ponto em que se consegue aguentar a canga da vida com aparente sucesso é uma dor intensa que só encontra rival naquela outra do
investimento próprio, sem travagens, cuja falência ou simples activação alimenta o inapelável receio. É uma vida com duas assombrações à espreita, o que tornaria longínqua a hipótese de felicidade, se dela houvesse margem para a crença. Daí as súplicas que querem tremendamente a grande precipitação, condicionadas pelo sentimento de incapacidade.
Mas depressa a outra parte leva a melhor e da certeza sem contraditório do sofrimento surge o desejo de ser coberto pelo grande manto que proteja os sentidos, da sua pressão, como se fosse possível dela proteger a interioridade.
Donde a invocação adaptada, acreditando numa paz suprema diversa da aparência de estabilidade, o ponto em que tudo parece afinal preferível à permanência na corda bamba do espectáculo que fomos dando para o mundo. Mas há uma suprema prevenção a fazer - a de que, inexistindo segurança na alternativa, possa constatar que a escuridão não faz mais, afinal, do que esconder o deserto.
De Henrique Ruivo:
dai o sinal de alarme anjos
dai o sinal de alarme
que já ninguém sabe amar-me
a minha alma é como um arame
onde a vida se equilibra num só dedo
é desse equlíbrio que tenho tanto medo
que possa tombar p´ra que alguém me ame
vinde segurar-me anjos
vinde segurar-me
que a noite tapa-me os olhos em surdina
fico suspenso desta dor voraz
que me desequilibra sobre o ar astral
a noite que me embale serena e maternal
que assim sem dor tudo se desfaz
anjos fechai as vossas asas
deixai-me cair anjos
para que sem dor tudo se desfaça
Pareceram-me adequados: «Anjo Voador», de G. B. Piazetta,
«Dor», de Nathan Glemb e «Noite no Arizona», deGeorge Elbert
Burr.
investimento próprio, sem travagens, cuja falência ou simples activação alimenta o inapelável receio. É uma vida com duas assombrações à espreita, o que tornaria longínqua a hipótese de felicidade, se dela houvesse margem para a crença. Daí as súplicas que querem tremendamente a grande precipitação, condicionadas pelo sentimento de incapacidade.
Mas depressa a outra parte leva a melhor e da certeza sem contraditório do sofrimento surge o desejo de ser coberto pelo grande manto que proteja os sentidos, da sua pressão, como se fosse possível dela proteger a interioridade.
Donde a invocação adaptada, acreditando numa paz suprema diversa da aparência de estabilidade, o ponto em que tudo parece afinal preferível à permanência na corda bamba do espectáculo que fomos dando para o mundo. Mas há uma suprema prevenção a fazer - a de que, inexistindo segurança na alternativa, possa constatar que a escuridão não faz mais, afinal, do que esconder o deserto.
De Henrique Ruivo:
dai o sinal de alarme anjos
dai o sinal de alarme
que já ninguém sabe amar-me
a minha alma é como um arame
onde a vida se equilibra num só dedo
é desse equlíbrio que tenho tanto medo
que possa tombar p´ra que alguém me ame
vinde segurar-me anjos
vinde segurar-me
que a noite tapa-me os olhos em surdina
fico suspenso desta dor voraz
que me desequilibra sobre o ar astral
a noite que me embale serena e maternal
que assim sem dor tudo se desfaz
anjos fechai as vossas asas
deixai-me cair anjos
para que sem dor tudo se desfaça
Pareceram-me adequados: «Anjo Voador», de G. B. Piazetta,
«Dor», de Nathan Glemb e «Noite no Arizona», deGeorge Elbert
Burr.
4 Comments:
At 12:06 AM, Viajante said…
A referência ao deserto fez-me ir buscar:
Grandes
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.
Álvaro de Campos
Discordaria do fim, embora não se discorde realmente de um poeta :)
Desatina-se do tino dele.
Gosto mais da prevenção a fazer.
At 7:53 AM, Paulo Cunha Porto said…
Senhora:
A Vossa inclinação para optar por diferente caminho do que o «Fim», aliada à benevolência para com a prevenção, fizeram-me ir procurar - e achar - esta terceira via face a ambas:
Pocuro amor no deserto das manhãs
nascidas das florestas do sono
onde o teu génio ausente
teima em dormir entre os meus braços
Reencontro-me para melhor me perder
nesse naufrágio de imagens passadas
que preenchem as páginas fazias dos dias
Perco-me nesses olhos feitos sombra
nesse sorriso de vento agreste
onde os longes são permanentes
António Sem
Onde Campos via omnipresença e a tal prevenção "risco" (futuro temido), este poema dá-nos a aridez no Presente, assombrado pela memória do que foi(?), que não é constatada no poema comentado, sem dúvida devido a reacção diversa à intensidade da dor.
Na minha adolescência o heterónimo Campos foi dos primeiros Poetas que amei. Hoje admiro-o. "Il-y-a une difference". Mas creio que ainda é mais acentuada nos homens do que no Maravilhoso Género da minha Interlocutora.
Beijo.
At 9:05 AM, Paulo Cunha Porto said…
Ah, o título do poema anterior é «LONGE».
At 10:18 AM, Esvoaçante said…
Sorriso, por ambos voltarmos cá (embora o meu intuito fosse "desviar" os poemas)
Pelo «il-y-a une difference».
Pela diferença de Género, que nem é exactamente do mesmo estilo.
Por uma manhã bem começada.
Beijo, por «longe».
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