Leituras & Tonturas
Há uma lepra que alastra entre alguns dos Espíritos Portugueses mais respeitados, que vem dando o futebol como responsável de todos os males do País. Primeiro foi o desvio do trabalho, depois a substituição do empenhamento cívico, hoje, num artigo de Vasco Graça Moura que merece ser lido, da concorrência que diminuiria a leitura. Lembro aliás, a saída preconceituosa com que num mítico programa televisivo da minha adolescência, «A Visita da Cornélia», Fernando Ribeiro de Melo calou uma boca de Fialho Gouveia em que se amalgamava no mesmo nome um futebolista e um escritor, dizendo que «não tinha a cultura nos pés». Agora, no «DN» o Tradutor de Dante defende a diminuição da cobertura televisiva do futebol, bem como o recambiar dos programas respectivos para horários menos nobres, utilisando-se os momentos mais vistos para despertar interesse pelos livros.
Creio que é uma falsa questão. Dever-se-ia começar, na escola, pela exigência de leitura de títulos importantes de que VGM também fala, mas expressa na absorção de obras completas e não de capítulos salteados, tantas vezes em acesso por fotocópias, ou recebidos em segunda mão, por resumos a pensar no ponto.
E quanto ao futebol, o interesse que as pessoas por ele demonstram é consequência e não causa das pechas que são apontadas as portugueses. Saturados de trabalhos ou estudos pouco motivantes, procuram a compensação no momento agónico da bola e das suas alegrias. E, desiludidos com uma classe política que, maioritariamente, não é merecedora de afectos, transferem-no para os jogadores, de quem, ao menos, ainda esperam alguma coisa.
A televisão pode servir, sim, como veículo para despertar o interesse leitor, mas por que não conjugando-a com o futebol? Por que não começar por chamar a atenção para os bons escritos que há sobre desporto, como meio de estender o interesse ao livro?
O desporto nunca foi inimigo da literatura. A melhor da Europa começou, até, pela celebração dos feitos dos atletas, nas odes de Píndaro. Bem sei que hoje não abundam os Píndaros. E talvez aí resida o mal. Mas aqueles que têm algum engenho e arte podiam bem esforçar-se por ir ao encontro do interesse do público, em vez de tentar tocá-lo, quais boiadeiros.
10 Comments:
At 11:40 AM, Anonymous said…
Tem razão, Paulo. Lembro-me de, já há tempos, ter lido que "A Bola" tinha feito mais contra o analfabetismo funcional do que quaisquer outras leituras ou programas, mantendo, ainda, a desejável ponte entre a diáspora e a terra natal. Além disso o adepto sente-se parte do jogo e as vitórias podem constituir oásis de alegria, neste imenso deserto de tristezas e incertezas em que nos transformámos.
Nas escolas, onde tudo começa, temos que repensar tudo de novo; é ali que temos que construir fortes alicerces que sustentem o edifício
da nossa tão adiada prosperidade. Mas aí parece que os comparsas não se entendem.
At 11:51 AM, Anonymous said…
Concordo plenamente.
At 3:05 PM, Jagoz said…
Totalmente de acordo.
Em bom rigor, parece-me que essas atoardas verrinosas acerca do pontapé na bola pretendem mais ser, em muitos casos, afirmações de auto-elogio e de pública proclamação de pertença. Serão uma espécie de senha-e-contrasenha para se entrar num «clube do bolinha» (sem bola, bem visto) de pretensões intelectuais - ou melhor, para se dar a entender que se pretende a esse clube. Passa por entender que há um divórcio insanável entre futebol e os neurónios. O que, não sendo necessariamente falso, não é necessariamente verdade.
At 3:07 PM, Jagoz said…
«pertence» e não «pretende».
Corrigido o erro. Deve ser a bola a subir-me à cabeça.
At 6:54 PM, Paulo Cunha Porto said…
E, Caro Anónimo, «A Bola» da escola antiga, quando o formato era outro e saía três vezes por semana, albergava muita distribuição cultural e qualidade estilística que a reprodução dos faxes das agências e as declarações apressadas sobre um mote do instante não permitem. Ainda assim, sem essa qualidade pretérita, parece-me evidente que também se pode usar os jornais desportivos, não só para despertar interesse em ler, conectando os temas procurados a livros que os tratem com competência, como semeando hábitos de leitura "tout court".
Meu Caro Alce:
Que satisfação, contar com a concordância de um Tal Vulto da Didáctica!
Na "mouche", Caro Jagoz. Em muitos casos funciona como um auto-certificado de qualidade intelectual, pela demarcação desse "horror que é o gosto das massas". E se estas lhes seguissem os conselhos, olhe, eram capazes de se virar para a celebração do futebol, como traço de classe e de sensibilidade!
Abraços aos Três.
At 7:24 PM, JSM said…
Caro Paulo Cunha Porto
Vou meter a cabeça onde muito jogador não mete o pé. Quero o meu espaço, não quero ser globalizado nesta euforia da bola. E tenho a certeza que venho de outras quadraturas, diferentes de VGM.
Um exemplo da minha grande área: os toxicodependentes gostam todos de música! Ora bem, isto não é possivel, nem é verdade.
Vou-me repetir, repetindo Pessoa: "são tantos que não podem ser tantos"!
Então o que é que se passa?
Isto é grave? Pouco saudável é concerteza.
Para mim, como monárquico, tem um sabor ainda mais irritante: a selecção como o único , e falso, espaço de 'portugalidade'! E então com aquelas cores!
Um abraço.
At 8:16 PM, Anonymous said…
Há dias no cabo, salvo a S.I.C. das mulheres, havia bola em tudo quanto era canal português; mas não era jogo; era o comentário imbecil da porta do estádio, da praça Sony, do café da esquina, &c.. Esta bola sem espectáculo é que é a desgraça.
O "povo vê o que lhe derem" dizia uma responsável da BBC há muitos anos. Ora estes canais comerciais, de bracinho dado com a publicidade, deixados em roda livre educam a seu bel-prazer para o negócio que lhes convier. E quanto mais estúpidos os espectadores mais fácil a tarefa.
Ora se as televisões já entenderam como isto funciona, porque acabam os governos com a tele-escola?
...
Desculpe o extenso comentário, caro Paulo.
Cumpts.
At 8:57 PM, Paulo Cunha Porto said…
Ah, Caro JSM,
mas não tem dúvida de que as cores são infelizes. Quanto à exclusividade do amor Pátrio direccionada para o onze nacional, o que há, julgo, é aproveitar essa capacidade de mobilização e estendê-lo a aspectos mais permanentes da Portugalidade.
Meu Caro Bic Laranja:
Inteiramente de acordo quanto ao irritante que é ter de asistir a notícias sobre sucessos de bastidores e outras incidências extra-desportivas. Mas isso não é o futebol, antes consiste em esticar o dito para ganhar anúncios.
O mal vem da concorrência, só mentes muito pias puderam acreditar que o despique entre jornais e televisões melhorassem a qualidade.
E sim, só estes timoratos partícipes do poder decisório não querem entender as potencialidades que têm nas mãos para promover os valores que dizem desejar.
Os Seus comentários, como os do JSM, nunca são extensos, anseio sempre por mais.
Abraços a Ambos.
At 2:12 AM, Anonymous said…
Li algures (terá sido no PÚBLICO, através da pena do historiador José Neves?) que o problema é a futebolite e não o futebol.
Ora aí está!
O alemão Paul Breitner, campeão mundial em 1974, recentemente em Lisboa, disse umas quantas verdades. Sosseguei a minha alma. Afinal, o problema não era meu.
Se o futebol é tão simples e eu já não tenho quase prazer nenhum em ver futebol, o problema é meu?
Não. Nada disso. Não nos lavem a cabeça. O futebol está mesmo muito pior. E quem anda satisfeito não gosta de futebol. É fanático.
Ainda hoje vi o Alemanha-Polónia. Que extraordinário exemplo de falta de capacidade de parte a parte.
Quanto aos Media, louvo uma vez mais a equipa da "Liga dos Últimos" (RTPN), convocada para a RTP1 com uma rubrica plena de humor e sentido de reportagem. Banho de bola em tudo o resto.
At 8:13 AM, Paulo Cunha Porto said…
Creio, Caro Luís, que é uma fatalidade cada geração considerar um decréscimo de qualidade do futebol do presente, quando comparado com o que viu vinte ou trinta anos atrás. Mas se ele contenta e entusiasma gerações mais novas, por que não aproveitá-lo para lhes despertar outros entusiasmos? Aliás, o teu último livro fá-lo, um tanto.
O que os inimigos da bola pretendem não é melhor futebol, é menos atenção a ele.
Abraço.
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