Leitura Matinal -242

A condição efémera mas que a nossa consciência insiste em ter como presente, no sentido temporal, quando a significação mais profunda dela
se encontra na acepção de dádiva, prega-nos a partida inultrapassável de, através do desejo, ou, menos aplacável ainda, das aspirações intensas sem objecto concreto, condenarmo-nos a uma flutuação sem destino declarado, onde
nos tentamos furtar à erosão da nossa parte extensa, com uma aplicação do parco capital que somos, sem outra verdade que o contorno da solidão. Mais até da temida, que a vivida é mais visível e torneável. Estilhaçando assim companhias que vamos encontrando pelo caminho, continuamos a enganar a fome, cambaleando
já ébrios ao ponto de não termos mais olhos para os vultos informes que nos poderiam salvar, fixa que foi a nossa atenção noutros pólos e turvo que está o nosso discernimento, paralisante da acção que pode redimir. Tão voltados para a nossa importância, apenas a conseguimos conjugar com a exterioridade fingindo cumprir o ciclo da vida, de uma linearidade esmagadora, reservando-nos um cantinho de esperança de que o nosso consista em excepcionais retornos que não passam de fantasia. E como consolo resta apenas rugirmos "na minha fantasia está a minha realidade e na minha realidade reside a minha fantasia". O que, passando por dito de espírito, é a pior das banalidades, isto é, a vida.
De António Sem

CICLO

Tenho o olhar rasgado
pelos instrumentos da ansiedade
que abrem os lábios do meu espaço
pela solidão cantante
dos aléns absolutos
pela loucura dos gestos
que transporto no vazio dos dias
pela fluidez do tempo
onde me invento perfeito
pelo amor semente
que germina na água do meu olhar
pelo vidro dos corpos
que se quebram no vaivém das marés
pelas sentinelas de mármore
que habitam as sombras
e por todos os outros que passam
sem qualquer definição humana


Incluindo «Além» de Marcus, «A Densidade da
Matéria, a Fluidez do Tempo», de Michael Cook e
«Ansiedade», de Ted Pitts.