Leitura Matinal -136

Quando as redes da nossa memória fixam uma cena em que não
estamos sós e de um dos outros intervenientes emana alguma
transgressora curiosidade, pode perfeitamente acontecer que
perdure por maior lapso a imagem desse impulso do que o prazer
por ele inquirido. No que à nitidez toca. Porque a nossa mente
está, de obscura e imperceptível forma, ligada aos arquivos do
nosso corpo, e, tal como este memoriza toques, gestos e pressões,
da contraparte ou do cenário, também os amazéns do nosso cérebro,
frequentemente decidem ligações peculiares ao rasto de momentos
determinados.
Pesando nisso, resta-nos sempre a incerteza de sermos recordados,
com equivalente intensidade. Ou de, não o sendo, termos deixado
a nossa marca, com importãncia, na personalidade desse curioso de
outrora que guardámos no nosso cérebro. Reversão da vontade de saber
que, quando associada às armadilhas do desejo em que buscámos
apanhar outras presas, pode conduzir-nos a imaginar solidão
similar à nossa e, escapando aos ensinamentos da álgebra, a
acreditarmos que as duas somadas dão uma companhia.
como podemos ler em Jaime Gil de Biedma, traduzido por
José Bento:

PEEPING TOM

Olhos de solitário, rapazinho atónito
que surpreendi a olhar-nos
naquele pinhalzinho, junto à Faculdade de Letras,
há mais de onze anos,
quando ia separar-me,
ainda aturdido de saliva e areia,
depois de nos rebolarmos os dois meio vestidos,
felizes como bichos.

Tua lembrança, é curioso
com que dissimulada intensidade de símbolo,
está unida aquela história,
minha primeira experiência de amor correspondido.

Pergunto-ne por vezes que será feito de ti.
E se agora em tuas noites junto a um corpo
regressa a velha cena
e ainda espreitas nossos beijos.

Assim o passado volta a mim,
como um grito desconexo,
a imagem de teus olhos. Expressão
do meu próprio desejo.