O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Saturday, May 06, 2006

Leitura ao Entardecer -3

Quer a nossa noção da imaterialidade que o vento e a sombra sejam
as predominantes imagens dela. Porque um e outra nos podem envolver como a morte e porque como a esta nos sentimos impotentes para golpeá-los. A memória que os bandos de pássaros têm das cambiantes atmosféricas, como as que os peixes têm das correntes aquáticas, são mais do que aptas para fazê-los migrar, mas não correspondem,
biograficamente, a recordação daqueles indivíduos. Ao invés, são determinações herdadas pela espécie. Esta consciência faz remeter para essa extra-individualidade irrevogável as conotações da perda inultrapassável que é a lembrança, o esfumado rasto que ficara do objecto dos sentimentos, condenada, também
ela a esvair-se, como o sopro vital do indivíduo, na perdurabilidade transpessoal que, sendo de todos, não é mais de alguém. É o drama de não saber o que se passou a partir do momento fatal do abandono deste mundo; em que tememos que o nosso recapitulante pensamento possa revestir-se de insignificância para o Ido Ser que desejaríamos ver reconhecê-lo. Onde apercebemos que o afastamento é mútuo e as memórias escaparam à nossa propriedade.
De Maria do Rosário Pedreira:

São tristes as aves que viajam na
memória do vento, tristes os olhos
que se demoram no gargalo de um
poço. E eu sou triste de não saber

que nome te pôs a morte quando
ontem te deitou na sua cama, e te
soprou nos cabelos o seu hálito frio,

e te embalou às escuras com uma
canção de vidro em que as aves se
enamoravam das próprias sombras

e, procurando-se em vão nas águas
turvas de um poço, não sabiam que
apenas mergulhavam lentamente, muito
lentamente, na memória do vento.


Bafejado com «Sombra do Vento», de Seseko Idei.
«A Sofisticação das Migrações», de Peter Wood e
«A Memória da Humanidade», de C. Auger.

4 Comments:

  • At 8:35 PM, Anonymous Anonymous said…

    Belo artigo, caro Paulo. Cumpts.

     
  • At 8:39 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Obrigadíssimo, Amigo Bic. Temos de aproveitar o Sábado para um pouco de poesia, que tem andado arredada, nestes tempos difíceis, de preenchimento excessivo.
    Abraço.

     
  • At 11:40 PM, Blogger Viajante said…

    Ah, já dizia alguém que as coisas passadas e as futuras não podem existir senão no presente.
    Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos passados, a memória relata as palavras concebidas que ficam como uma espécie de vestígio.

    Lembranças de vividos, evocadas no presente, tal como as pro-gnoses do futuro se "observam" hoje.
    Transparece que não há passados ou futuros?
    Seria próprio afirmar que vivemos o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras.

    Sendo de todos, não é de ninguém, a perdurabilidade transpessoal.
    Como o que é colectivo, não é pessoalizado. Ou como quando todos são culpados, ninguém verdadeiramente o é. O que inocentaria todos.
    Voltando atrás, e retomando o raciocínio, a perdurabilidade só é de alguém quando, à maneira grega, alguém de individualiza. Se separa da multidão. E só assim sobrevive à morte.

    Et voilá, Misantropo! Lá passei á estratosfera :)
    beijos, e risos, num regresso breve.

     
  • At 9:32 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Incansável Viajante:
    a brevidade do Vosso regresso espicaça no sentido da publicação de Leituras que possam merecer o Vosso comentário.
    Claro que as imperativas dimensões e seriação dos tempos são "conditio sine qua non da rememoração". Mas se necessárias, talvez não sejam suficientes, na medida em que a própria limitação humana seja posta perante a fuga dos entes queridos, em sentido duplo, à exclusividade da sua reconstituição, processo que corresponde ao mais radical esbatimento, fruto da incerteza de um encadear apenas adivinhado, que não conhecido.
    Por isso condensais magistralmente: «sendo de todos não é de ninguém». É esse o drama. "Bigger than life".

     

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