A Perversão do Teclado

O «DN» de hoje aborda um tema candente: o de o uso dos computadores, com jogos e Internet ensacados no mesmo receptáculo estar a apurar as qualidades da espécie, quer intelectuais, quer reactivas. Admite-se, evidentemente, que o emprego moderado destes meios desenvolva capacidades específicas, porém alimenta-se dúvidas consideráveis quanto a dois aspectos: as aptidões exercitadas serão facilmente transpostas do écran para a realidade exterior? E os conhecimentos obtidos pela rede, substituirão, com vantagem, o contacto universalista com a realidade? As críticas que se fizeram à cultura livresca e à Idade do Especialista não ganharão agora uma actualidade tremendíssima? Claro que quem só lesse manuais temáticos e não pensasse senão num campo de actividade passaria pelos mesmíssimos riscos de quem estaciona horas em frente a uma área disponibilizada pelo computador, sem variações. Mas, pela própria natureza do exercício da leitura e pelo acampamento diante do monitor, os intervalos mais alargados da primeira permitem áreas de percurso, exploração e variações maiores, com a consequente ingestão de experiência diversificadora. A net pode ser coisa excelente, ou péssima, conforme o próprio mundo da bloguística evidencia, consoante funcione como mediação para o mundo, ou circunscrição dele. Além de que a perversão susceptível de acompanhar o homo informaticus é maior, na medida em que faça passar a ideia de tudo se poder resolver, através de uma digitação, ou de um clic. É uma reedição do mito prometaico, revista e piorada. O acesso à técnica que permitisse a assimilação ao poder dos Deuses relevaria da esfera da hybris, mas ainda poderia envergar o camuflado da elevação da espécie. A utilização de keyboard para tudo vem introduzir a simulação de ter o mundo, já não a seus pés, antes na ponta dos dedos. Sem exercitar o carácter pela pressão do esforço físico ou da curiosidade universal. No limite, até as satisfações eróticas dos estudantes norte-americanos já são, maioritariamente, virtuais. Não é uma fatalidade, pode é vir a ser fatal.