O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Saturday, April 29, 2006

Leitura Matinal -325

Quando nos falta algo de nós, somos tentados a acreditar que é a
parcela do nosso espírito que nos poderia elevar para lá da opressiva submissão à vulgaridade da vida, por muito resgatada que ela tente ser, através da rédea solta concedida à sensibilidade. Ao sentir a ausência da inebriante visão salvadora que, mitificando, sem a megalomania da falsidade, mas com o poder transformador do acto de amor em que intervêm pessoalismo e gosto, permite dar à luz um ser diverso, com os genes do nosso,
o Poeta, ou o simples amante extraconjugal da Poesia tomam consciência da sua secura, afastados que estão da idealidade que lhes permitiu fazer germinar o produto mais atractivo do seu espírito. Dessa relação defunta sobra então a memória da lição e da pureza cujo ocaso deixou desprovido de verve o rememorador lamentoso. Porque será sempre no que dela consiga recuperar que se conseguirá reinventar razão para continuar a viver. É a mesma ambição, em idade variável, que faz suceder à criatividade a lembrança.
De João de Barros:

ADEUS À POESIA

Poesia, aadeus! Perdi-me
Ou te perdi, talvez,
nalgum caminho obscuro
Do meu incerto andar...
Em vão já te procuro,
Em vão te ouço chamar...
Perdi-me e não me vês,
Perdi-te e não te vejo,
Meu único desejo
De ser, mais do que sou,
Sofreguidão da vida
Que em ti e só em ti
Eu aprendera a amar...
Onde te escondes, onde
Se oculta essa esperança
Mais forte do que a Morte,
mais pura que a verdade
Que em ti jamais se cansa
De sempre madrugar?
Eis-me sòzinho - e longe
Eis-me esquecido - e pobre...
Mas da minh´alma ansiosa
Voam ainda, fluem
De mágicas redomas,
Os bálsamos e os aromas,
Os pólens e os eflúvios
Duma presença eterna
Que um dia me enleou...


Inspirando em «Garrafa de Poesia», de Jules
Gotay e «Poesia», de Mikhail Schigol.

4 Comments:

  • At 7:38 PM, Blogger Viajante said…

    E se a primeira permissa estiver enviesada? Imagine-se que o «que nos falta» não é a «parcela do espírito que nos poderia elevar»...É tentadora, a ideia!

    Emparelhados o Poeta e o amante extraconjugal da Poesia, tanto na relação como no que lhes há-de sobrar dela :)
    Que associação, tento em material como essencial dimensão (risos).
    Supondes então que a Poesia se lhes escapará, quer a um quer a outro - pois que, afinal, nem a criatividade permanece, nem a lembrança se esquiva a tomar o seu lugar...
    Entre a perspectiva trágica da perda e a aridez da secura, Vós e João de Barros dais «de barato» que o Poeta, a sê-lo, ou o amante extraconjugal, a merecê-lo, aprenderiam a re-criar ou in-ventar em si a visão salvadora!

    Divertida com as possibilidades que as ideias traziam, beijos.

     
  • At 9:58 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Oh Viajante Impiedosa,
    que, da Poesia participando, Vos divertis à custa daqueles a quem Ela falta:
    Mas... não se trata de suposição apriorística, antes de constatação de um desgosto corrosivo!
    E achais-me assim tão optimista? Nada tomo por certo, apenas aponto o caminho da Memória do que possível foi, como trilho da suportabilidade sofrida da sobrevivência, após o falecimento da felicidade criativa.
    Alegra-me que vos divirta tão baça visão de uma angústia e de um desejo entretecidos na retrospecção. Mas não Vos admireis que de Vós faça queixa à Gémea Mnémosine. Creio que ela substituirá o divertimento pela piedade e, quiçá, pela generosidade.
    Beijo, contristado pelos saudosos dos textos, mas feliz por Vos ter alegrado.

     
  • At 2:57 PM, Blogger Esvoaçante said…

    Oh, meus Amigos...
    A Poesia (e a Arte) parecem possuir em comum uma certa permeabilidade entre os conteúdos gerados em si e que são trazidos à consciência e ao exterior. Mas não mais que isso...
    Para aferir que assim é, alguém mais Jungeano, diria que a neurose não cria arte, pois ela o fracasso e a não-realização ou que as artes fruto da neurose são sombras que passam e se vão; mas há aquilo que fica: o tempo conserva o que realmente possui valor.

    A verve criadora pode suscitar conduta excêntrica, original ou extemporânea que a mente criativa é capaz de exteriorizar e que os demais não vêem.
    São os anseios, as imagens e as experiências ignoradas pela maioria das pessoas comuns justamente o que desponta de forma irresistível e muitas vezes aflitiva na consciência do homem criativo.
    O homem comum é afectado de forma bem mais branda do que o homem criativo (e por isso, é conhecida a idéia de que a extrema criatividade de alguns artistas os aproxima muito da loucura).

    A compreensão do tempo, do passado e do futuro no presente, é a condição para a produção intelectual e, diz alguém, sem o lamento por uma grandeza perdida, não é possível nenhuma renovação.

    Entendo que é o sentido da perda - já vivida ou temida, por se prever vindoura - que acompanha a Criação e permanece antes e depois dela.
    Que a Inspiração é caprichosa.
    E devemos respeitá-la e venerá-la tanto quanto conseguirmos... pois mesmo assim, nada está garantido.

     
  • At 9:21 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Sábia Julgadora Mnemósine:
    Ora em boa hora Vos convoquei. Claro que o desgosto não é igual entre o comum dos mortais e aqueles que fazem a corte às Vossas Filhas, as Musas. Por isso me entristeceu a ligeireza com que a Vossa Mana encarou o desgosto pungente do Poeta, ou a frustração correspondente do outro que afinal havia.
    Mas claro que no homem excepcional, com as faculdades por Vós concedidas, tal a memória; e com o auxílio dos Vosso Rebentos, qual inspiração, é possível tornear o inóspito deserto em que se tornou o espírito, agarrando com mãos ambas a cauda do que foi e do que se pode.
    Quereis prova? João de Barros expressa a sua tristeza pelo afastamento da Poesia... através de um poema!
    Beijo o trilho que pisais, oh Divindade!

     

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