Leitura Matinal -279
Assim como o passageiro à janela de um comboio que passa por outro se
pode enganar acerca de qual está em movimento, também o Autor de uma obra muitas vezes cai na superstição de atrbuir à sua realização passada a responsabilidade do desconforto que sente ao voltar a ela, fazendo por ignorar que lhe cabe a si a responsabilidade da modificação geradora de estranheza entre criador e criatura artísticos.
É o desgosto de relembrar uma fase vital que se ultrapassou, ou até um procedimento a que se deixou de aderir, que provoca o pendor acusativo das releituras, imputando-lhes o papel da assombração que intranquiliza, quando o certo é que a paz interior em que fingia avançar era, na generalidade, tão fictícia, como incapaz de resistir a recordaçoes do que se originou.
Sendo conduzido à insuportabilidade do degredo decretado pelas suas produções, está o pobre imaginativo artífice que, a cada passo, pensa ter atingido um degrau mais próximo da Perfeição, a ver-se impedido de singrar nessa ficção pelas amarras que o prendem a outras fantasias, já como tal reconhecidas, porque, entretanto, ultrapassadas. A emancipação das concretizações anteriores do seu espírito é a fórmula imaginativa a que se agarra, para se sentir estranho ao que se foi, e obter espaço para levantar a vela da esperança no que se vai sendo. Se Lady MacBeth dizia que «o que está feito, está feito», cada agente das Artes deseja não ser atormentado pela persistência da sua acção, em face da qual se sente objecto impossível de identificar e de harmonizar
De Ángel Crespo
TEMA DE ORFEU
Sinto receio
de reler o que já escrevi.
Como vou regressar
sobre as pegadas do tempo,
destecer a tapeçaria tramada
com tanto medo às figuras
que os fios iam revelando?
Agora, quando já vivem
sua existência a meus olhos alheia,
nesse país ou deserto
sobre que se deteve o sol,
- como imiscuir-me em seus ritos
insuspeitos, que talvez
apenas pretendem desterrar-me?
Sinto receio
de achar o que tinha perdido
de encontrá-lo entre as gretas
- visíveis só para mim -
que forma o avesso dos versos.
Quem me assegura que mais tarde
poderei esquecer os gestos hostis
- ou talvez demasiado leves -
que deixei convertidos em chuva
que não acaba nunca de cair,
em raízes famintas
que bem poderiam devorar-me?
Com a colaboração de «Homem Criativo», de
Dane Rudhyar, «Fantasmas do Passado», de
Jean Nind e «Exílio», de Bruno Cavellec.
pode enganar acerca de qual está em movimento, também o Autor de uma obra muitas vezes cai na superstição de atrbuir à sua realização passada a responsabilidade do desconforto que sente ao voltar a ela, fazendo por ignorar que lhe cabe a si a responsabilidade da modificação geradora de estranheza entre criador e criatura artísticos.
É o desgosto de relembrar uma fase vital que se ultrapassou, ou até um procedimento a que se deixou de aderir, que provoca o pendor acusativo das releituras, imputando-lhes o papel da assombração que intranquiliza, quando o certo é que a paz interior em que fingia avançar era, na generalidade, tão fictícia, como incapaz de resistir a recordaçoes do que se originou.
Sendo conduzido à insuportabilidade do degredo decretado pelas suas produções, está o pobre imaginativo artífice que, a cada passo, pensa ter atingido um degrau mais próximo da Perfeição, a ver-se impedido de singrar nessa ficção pelas amarras que o prendem a outras fantasias, já como tal reconhecidas, porque, entretanto, ultrapassadas. A emancipação das concretizações anteriores do seu espírito é a fórmula imaginativa a que se agarra, para se sentir estranho ao que se foi, e obter espaço para levantar a vela da esperança no que se vai sendo. Se Lady MacBeth dizia que «o que está feito, está feito», cada agente das Artes deseja não ser atormentado pela persistência da sua acção, em face da qual se sente objecto impossível de identificar e de harmonizar
De Ángel Crespo
TEMA DE ORFEU
Sinto receio
de reler o que já escrevi.
Como vou regressar
sobre as pegadas do tempo,
destecer a tapeçaria tramada
com tanto medo às figuras
que os fios iam revelando?
Agora, quando já vivem
sua existência a meus olhos alheia,
nesse país ou deserto
sobre que se deteve o sol,
- como imiscuir-me em seus ritos
insuspeitos, que talvez
apenas pretendem desterrar-me?
Sinto receio
de achar o que tinha perdido
de encontrá-lo entre as gretas
- visíveis só para mim -
que forma o avesso dos versos.
Quem me assegura que mais tarde
poderei esquecer os gestos hostis
- ou talvez demasiado leves -
que deixei convertidos em chuva
que não acaba nunca de cair,
em raízes famintas
que bem poderiam devorar-me?
Com a colaboração de «Homem Criativo», de
Dane Rudhyar, «Fantasmas do Passado», de
Jean Nind e «Exílio», de Bruno Cavellec.
2 Comments:
At 9:33 PM, Viajante said…
É o que faz a ausência... depois reflecte-se em comentários «de enfiada», a tocar a dúzia :))
Mas este é, como os anteriores, irresistível.
A paz interior tem sempre uns toques de ficção, de serenidade inventada. Particularmente, se se olhar à volta. Ou no caso da criação.
Mas vale pelo que de promissor traz e pelo que de belo revela, ainda que momentaneamente.
E fica a esperança de que o degredo insuportável se reduza em ambas, em ser degredo e na insuportabilidade.
"Como vou regressar
sobre as pegadas do tempo,
destecer a tapeçaria tramada
com tanto medo às figuras
que os fios iam revelando?"
Não vou. Por impossível per si e por desconstrução major.
Mas poderei, ainda assim, destecer? ou rever os espelhados?
beijo interrogativo
At 3:31 PM, Paulo Cunha Porto said…
A revisão das imagens é tigre pronto a saltar, como as da criação, mas parece não compoortar um tão grande índice de má convivência com a própria pele. Talvez porque o reflexo passe melhor por "Outro", comparativamente com os filhos do espírito, de que a renegação custa, mas tenta...
Beijo risonho e... presunçosamente tranquilizador (r).
Post a Comment
<< Home