Leitura Matinal -209
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No pesadelo inamovível que é o sofrimento causado pela persistente recordação das Amizades prescritas quantas vezes se não recorre a improvável confidente que nos traga, pela mediocridade sempre
viçosa do desabafo, a tranquilidade momentânea que nos permita virar a página que estava bloqueada? E depois de termos obtido esse sossego, quantas alturas há em que não nos revoltamos contra o momento de fraqueza e, ingratamente, não recomeçamos o ciclo infernal, atirando, numa raiva pueril, para bem longe de nós Aquele que nos valeu, aquando da angústia? Perpetuamente condenados a sucessivos remorsos ou invasões do mal-estar, só tarde, demasiado tarde, tendemos a perceber que esse afundamento das generosidades sacrificadas de camaradagens antigas, tendo sido essencial para nos manter à tona, acaba, a prazo, por significar a nossa amarga rota para o fundo do mar das evocações entristecidas, o duradouro olhar para as cadeiras vazias dos nossos afectos.
De Paula Almada-Negreiros,
A NOITE VAMPIRESCA
Tenho os calcanhares aparafusados
sobre a agenda que não vira a folha.
Convido o Morcego do meu telhado
a conversar comigo todas as noites.
Amachuco cabelos após cabelos
e deito-os ao cesto de papeis.
Recordei ao Morcego os amigos naufragados.
Ele torceu-se de dores e chorou toda a noite.
Dei-lhe a beber o vinho das ânforas de lata.
Ele pediu-me para beber os meus olhos.
Arranquei os olhos e dei-lhos.
Ele bebeu os olhos e pediu mais
e eu adormeci sobre os seus braços alados.
O morcego começou a embalar-me
e a atormentar os meus sonhos
de criança.
Os vulcões da ira atormentaram a Humanidade
e pedi ao Morcego que não voltasse.
E ele não voltou.
E eu tive dó do morcego que partiu
no navio naufragado.
E o morcego partiu.
Não bebeu mais os meus olhos.
Não me tomou mais nos seus braços alados
nem me atormentou os sonhos.
E vi os milhafres certa noite
rasteiros
a vir procurá-lo.
Ilustrei com «A Besta do Pesadelo», cuja autoria desconheço,
a imagem da «Ira» da Capela Scrovegni, de Pádua e um dos
quadros da série «Entre Amigos», de Diane Romanello.
No pesadelo inamovível que é o sofrimento causado pela persistente recordação das Amizades prescritas quantas vezes se não recorre a improvável confidente que nos traga, pela mediocridade sempre
viçosa do desabafo, a tranquilidade momentânea que nos permita virar a página que estava bloqueada? E depois de termos obtido esse sossego, quantas alturas há em que não nos revoltamos contra o momento de fraqueza e, ingratamente, não recomeçamos o ciclo infernal, atirando, numa raiva pueril, para bem longe de nós Aquele que nos valeu, aquando da angústia? Perpetuamente condenados a sucessivos remorsos ou invasões do mal-estar, só tarde, demasiado tarde, tendemos a perceber que esse afundamento das generosidades sacrificadas de camaradagens antigas, tendo sido essencial para nos manter à tona, acaba, a prazo, por significar a nossa amarga rota para o fundo do mar das evocações entristecidas, o duradouro olhar para as cadeiras vazias dos nossos afectos.
De Paula Almada-Negreiros,
A NOITE VAMPIRESCA
Tenho os calcanhares aparafusados
sobre a agenda que não vira a folha.
Convido o Morcego do meu telhado
a conversar comigo todas as noites.
Amachuco cabelos após cabelos
e deito-os ao cesto de papeis.
Recordei ao Morcego os amigos naufragados.
Ele torceu-se de dores e chorou toda a noite.
Dei-lhe a beber o vinho das ânforas de lata.
Ele pediu-me para beber os meus olhos.
Arranquei os olhos e dei-lhos.
Ele bebeu os olhos e pediu mais
e eu adormeci sobre os seus braços alados.
O morcego começou a embalar-me
e a atormentar os meus sonhos
de criança.
Os vulcões da ira atormentaram a Humanidade
e pedi ao Morcego que não voltasse.
E ele não voltou.
E eu tive dó do morcego que partiu
no navio naufragado.
E o morcego partiu.
Não bebeu mais os meus olhos.
Não me tomou mais nos seus braços alados
nem me atormentou os sonhos.
E vi os milhafres certa noite
rasteiros
a vir procurá-lo.
Ilustrei com «A Besta do Pesadelo», cuja autoria desconheço,
a imagem da «Ira» da Capela Scrovegni, de Pádua e um dos
quadros da série «Entre Amigos», de Diane Romanello.
3 Comments:
At 9:54 AM, Anonymous said…
Apetece dizer:
"Lindo gato,vem cá,vem ao meu colo;
Encolhe as unhas dessa pata,
E deixa que eu mergulhe nos teus olhos,
Um misto de metal e ágata.
Quando os meus dedos, à vontade, afagam
O dorso elástico, a cabeça,
E a mão se me inebria de prazer
No corpo eléctrico, a apalpálo."
Fragmento do poema OS GATOS, de Charles Baudelaire, in Assinar a Pele.
Um bom dia:)
At 12:21 PM, João Villalobos said…
Isto é um poema?!! Deves estar a gozar! Não sei quem é a senhora mas não considero que faça juz ao apelido.
Já o teu próprio texto, esse, está muito bom. Mas levezinho é que não :)
At 8:05 PM, Paulo Cunha Porto said…
Meu Caro João: o peso do comentário vejo-o coincidente com aquele que consegui descortinar no poema. Já percebi que não és da mesma opinião. Mas, como escreveu Gedeão:
«Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.»
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