O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Sunday, April 02, 2006

Recapitulação da Vida

Lido o «BILHETE DE IDENTIDADE», a autobiografia de Maria Filomena Mónica. Não tenho dúvidas da importância do livro, que passará, certamente, a figurar em todas as bibliografias da História do Século XX português. Não porque contenha qualquer dado fundamental concernente aos acontecimentos de relevância política, sim por activar a libido incontornável dos historiadores, dirigida à caracterização dos comportamentos dos estratos tidos como superiores, do grupo. A escrita é a mais adequada à obra. Sem o refinamento estilístico que faça parar para total captação e fruição, mas com a competência de ritmo narrativo, salvo numas poucas páginas de reprodução de notas íntimas, que prende e faz sorver, sem interrupções, o relato. Claro que se lhe pode opor o escrúpulo ético que censure a revelação de dados confidenciais de Familiares, os quais uma consciência mais exigente poderia achar não flutuarem na disponibilidade da Autora. Como se poderá dizer que o modelo de reconstrução do passado reservado para que remete, o do mundo anglo-saxónico, assentar, normalmente, mais no aspecto público do que na esfera privada. Mas quem dá o que tem a mais não é obrigado; e MFM dá-o, indiscutivelmente. A vida pessoal, quando publicada, passa ao estatuto de pública, pelo que não deve haver pudor na actividade profaníssima de mirá-la e comentá-la. O que salta mais à vista é a questão das prioridades das opções - como as tendências do corpo guiaram as adesões espirituais, em vez do contrário. O que é muito instrutivo. Da classe forçadamente intelectual que frequentava a Memorialista fica o travo amargo da mediocridade moral: gente que se reunia num restaurante para celebrar a morte de um Homem, Salazar, no caso. Não porque isso significasse qualquer mudança política, já que Ele acamado e afastado estava, havia dois anos, senão pela pura baixeza dos anões impotentes, face ao passamento do Gigante. Definição suficiente!
Ah! E nunca pensei que uma Socióloga mitificasse a tal ponto a Sociedade. Sempre acreditei que o estudo gerasse alguns anticorpos que permitissem a distanciação...
Mas é imperativo ler. E esse será o maior elogio que se lhe pode fazer - e que a Biógrafa de Si, provavelmente, pretenderá.

14 Comments:

  • At 5:25 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Sabe, meu Caro Sapka, há uma diferença de dimensão entre escrever um texto, mesmo genialmente, e aguentar, contra ventos e marés, o poder, durante 40 anos, edificando uma doutrina, recuperando um País e conservando a integralidade de um território difícil de defender, contra a influência dos poderosos.
    As palavras, uma vez articuladas, custam muito pouco. As obras, então na coisa pública, exigem uma vida inteira de cuidados para não serem desperdiçadas. Mas, se tem dúvida, compare a tranquilidade forte com que Um viveu e morreu e os solavancos de infelicidade com que o Outro se afogou no álcool.
    Agora, por favor, não venha dizer que eu desmereço o Poeta Pessoa. Tento reconduzi-lo é ao lugar que julgo o seu. De qualquer forma, o tema, aqui, era a MFM e as gerações referidas no livro. Onde há pessoas, mas não Pessoa.

     
  • At 7:27 PM, Blogger Jansenista said…

    E o melhor de MFM é imaginar a cara de alguns dos retratados que eu conheço há uns anos (vivi muitos anos a uns passos de casa da família). Melhor do que Nicolau Tolentino a desancar nas cabeleiras empoadas da fidalguia sem comedoria! Acho que alguns dos retratados ainda estão doentes...

     
  • At 7:29 PM, Blogger Jansenista said…

    Quanto a um comentário supra, e dado que as minhas simpatias vão por igual para as 2 figuras, eu diria que um é o anão mais alto do mundo, e o outro o gigante mais baixo: qual é qual - passa a ser indiferente...

     
  • At 8:34 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Meu Caro Sapka: por favor, cada um faz a sua parte, não se tente a alinhar no discurso de que as culpas dos que não quiseram ou não souberam manter cabem aos que o quiseram e souberam. Isso já não é brincar com as palavras, é fazê-lo com os factos. E nós não somos como o Jean-Jacques, que os desprezava. Quanto ao Pessoa, a princípio ele até acolheu com bons olhos a reorganização salazarista da Ditadura Militar. Mas como estava com os olhos postos num ideal sebástico com que o António, ao contrário do sidonal antecessor, pela voz e pelo espírito se não coadunava, foi-se afastando. Mas a gota de água só surgiu com a lei que visava as sociedades secretas, que era mais do que o esoterismo dele podia aguentar.

    Meu Caro Jansenista: Faço ideia, ligar as revelações às pessoas, quando as conhecemos para além do carácter público que evidenciam, deve ser aliciante de tomo. Creio que o leu numa noite, conforme julgo ter lido no Ashram. Compreendo-O perfeitamente, também o devorei de um fôlego.
    Abraços a Ambos.

     
  • At 4:13 AM, Blogger Mendo Ramires said…

    A talho de foice, mas tem de ser e já (desculpa lá, Paulo).
    Agora e Sempre:
    António de Oliveira Salazar — Presente!
    Fernando Pessoa — Presente!

     
  • At 6:10 AM, Anonymous Anonymous said…

    Penso que a informação directa terá interesse para alguns leitores que podem não estar a entender o interessante debate.

    António de Oliveira Salazar
    por Fernando Pessoa

    António de Oliveira Salazar.
    Três nomes em sequencia regular...
    António é António.
    Oliveira é uma arvore.
    Salazar é só apelido.
    Até aí está bem.
    O que não faz sentido
    É o sentido que tudo isto tem.

    Este senhor Salazar
    É feito de sal e azar.
    Se um dia chove,
    A água dissolve
    O sal,
    E sob o céu
    Fica só azar, é natural.
    Oh, c'os diabos!
    Parece que já choveu...

    Coitadinho
    Do tiraninho!
    Não bebe vinho.
    Nem sequer sózinho...

    Bebe a verdade
    E a liberdade,
    E com tal agrado
    Que já começam
    A escassear no mercado.

    Coitadinho
    Do tiraninho!
    O meu vizinho
    Está na Guiné,
    E o meu padrinho
    No Limoeiro
    Aqui ao pé,
    Mas ninguém sabe porquê.

    Mas, enfim, é
    Certo e certeiro
    Que isto consola
    E nos dá fé:
    Que o coitadinho
    Do tiraninho
    Não bebe vinho,
    Nem até
    Café.

     
  • At 6:32 AM, Anonymous Anonymous said…

    Misantropo: "pura baixeza dos anões impotentes, face ao passamento do Gigante"

    Sapka: "É curioso o que diz sobre os anões e o gigante [...] não faço uma distinção muito pronunciada entre gigões e anantes"

    Jansenista: "um é o anão mais alto do mundo, e o outro o gigante mais baixo"


    À venda nas boas livrarias, mais um calhamaço para os coleccionadores:

    ***
    In Our Hearts We Were Giants: The Remarkable Story of the Lilliput Troupe, A Dwarf Family's Survival of the Holocaust
    by Yehuda Koren, Eilat Negev
    Carroll & Graf Publishers, 2005
    ***

    Deles disse o London Daily Mail, entre muitas outras coisas, todas igualmente verdadeiras:

    «From the horror of Auschwitz, an astonishing story of survival has emerged after almost six decades. It concerns a troupe of Jewish travelling musicians named Ovitz, comprising seven dwarfs and their two full-sized sisters. They actually heard the gas chamber door clang shut on them, and smell the poison gas seeping in. But their lives were saved by Dr Josef Mengele, the Polish death camp's evil doctor. He acted not from compassion, but because he saw in them the chance to further his research in creating an Aryan master race. [...] She described how, chillingly, Mengele used to chant a little rhyme he made up for her family: 'Over the hills and seven mountains, there my seven dwarfs do dwell.' He even made a film of them which was sent to Hitler for his amusement at his mountain retreat. [...] An intrigued Mengele had intended to greet the dwarf family among the milling crowds at the entrance ramp to Auschwitz. But in the chaos, they were dragged straight to the gas chamber. 'We were standing naked, men and women, when the heavy metal door slammed behind us and we started smelling the gas pouring in,' Perla recalled. 'Suddenly, through the fog, we heard shouts. "The dwarfs! Where are the dwarfs?"' [...] After liberation the family were taken to Russia, where they had to spend another year in a refugee camp before being allowed to return home. They then moved on to Haida in Israel and performed as a cabaret act together. In 1955, sick through the experiments they endured, they performed for the last time. With the money they had earned they moved to a large flat and bought two cinemas and a café. In 1980 they sold their businesses, and one by one they passed away.»

     
  • At 9:09 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Meu Caro Mendo: é sempre altura para um brado desses.

    Quanto às adendas histórico-literárias, um poema satírico que pode tanto como as milhentas anedotas que se contavam do Estadista, até o divertiam e, claro está, deixavam a sua dimensão intocada. Não é à pequenez, salvo, eventualmente, em tipificações anónimas, que é dirigida a actividade satírica.
    Sobre Mengele há uma história perturbadora, a da Mulher, que não era anã e que ele também terá salvo. Faço ideia do conflito de lealdades que não terá atravessado a cabaça dela. Mas suponho que a intensidade de saber-se excepção terá triunfado sobre outras considerações.
    Abs.

     
  • At 1:18 PM, Anonymous Anonymous said…

    Sobre Mengele há uma história perturbadora, a da Mulher, que não era anã e que ele também terá salvo.

    O Mengele? Terá salvo quem de quê? A Branca de Neve dos 7 anões?...

     
  • At 9:11 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Uma judia, locatária dos campos, que de que ele terá evitado a alegada frequentação da gigantesca cozinha. E, já agora, em matéria de sexualidade, o simbolismo desses e doutros anões é riquíssimo...

     
  • At 8:11 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Oops, cortem um "que" na resposta anterior

     
  • At 6:14 AM, Anonymous Anonymous said…

    E, já agora, em matéria de sexualidade, o simbolismo desses e doutros anões é riquíssimo...

    Sim, parece que é verdade.

    Segundo o sobrevivente Mordecai Lvantaï, várias cidades alemãs usavam peças que o Dr. Manguelas lhes mandava nos sinos dos seus campanários.

    Era ver a população nos seus banhos a ensaboar-se com o famoso sabão ao som dos carrilhões.

     
  • At 8:54 AM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Este conceito tão particular de higiene que dá com o nome de «Limpeza» para outros eventos de macabra memória...

     
  • At 11:24 AM, Anonymous Anonymous said…

    "Limpeza" é vocábulo vulgar em todos os jargões militares. Os americanos fartaram-se de "limpar" no Vietname e nunca ninguém lhes atribuiu intenções de extermínio.

    Imagine o que seria as fotos dos body countings, juntas às fotos de My Lay (devidamente recortadas e aproveitadas para provar 1001 extermínios diferentes), e as declarações de um gen. Le May somadas a tudo isto para o provar...

     

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