Leitura ao Entardecer -1
Dois seres que se pretendem tão diferentes, embora, amiúde, bem
convergentes, são unidos, em graus diversos de exteriorização de sensibilidade, pela necessidade do espectáculo de um sofrimento de que, sinceramente ou por conveniência, se condoam. Não admira pois que o investimento sensitivo que empreendam busque incessantemente os indícios que permitam a percepção dos transes-modelo, essas assumpções grandiloquentes ou abafadas
de uma Humanidade que se possa carpir decentemente, pelas depuradas formas da Arte, ou da Solidariedade. O que troca estas voltas é o estado a que, menos vezes, talvez, leva a obsessão do equilíbrio. Ao prescindir e reprimir a manifestação da sua própria dor, uns quantos de entre nós conseguem a maior vitória ao alcance de um membro da Epécie - a que é obtida sobre si. Mas não devemos esquecer que onde há um vencedor, há também um vencido. Que, neste caso, coindidem na identidade. Imune, por habituação, sob a máscara de impassibilidade que afivela, erradica o seu próprio sentir e bane aquele que, por reacção, poderia despoletar. Fica, então, bom para pendurar na parede.
De Augusto Ricardo:
ÂMAGO
Tu, que julgas entender
a dor dos outros não sentindo a tua,
desconheces a pena que se oculta
e não se mostra escancarada e nua.
Andas decerto a compor
risíveis lances de farsa,
como se a dor alheia apenas fosse
leve sombra esmaecente
de promessa fementida,
sem grandeza e sem virtude
em que a pobre alma ferida
algumas vezes se ilude.
Por que não lembras aqueles
que não riem nem praguejam,
não gritam nem desesperam
de modo que os outros vejam?
Não é nos sorrisos tristes,
nem nos prantos, nem nas mágoas,
nem na ventura traída,
nem no furor das revoltas,
em que há negros pensamentos
de vinganças e de morte
que podes erguer a vida.
Preso a uma teia ilusória,
que o cerca e fascina, o Homem
julga apagar no silêncio
estigmas sombrios da sorte,
e quem não murmura queixas,
guarda as lágrimas, não chora,
é quase sempre o mais forte.
Mas o ser que assim procede
sem revelar aos estranhos
os seus males e os seus prantos
e esquece a dor que sofreu,
não se lastima nem ri,
é talvez raro entre tantos
e entre tantos se perdeu:
- não morreu só para os outros,
morreu também para si.
Testemunhado por «O Artista Sofredor», de
Moser e «Silêncio», de Chris Langstroth.
convergentes, são unidos, em graus diversos de exteriorização de sensibilidade, pela necessidade do espectáculo de um sofrimento de que, sinceramente ou por conveniência, se condoam. Não admira pois que o investimento sensitivo que empreendam busque incessantemente os indícios que permitam a percepção dos transes-modelo, essas assumpções grandiloquentes ou abafadas
de uma Humanidade que se possa carpir decentemente, pelas depuradas formas da Arte, ou da Solidariedade. O que troca estas voltas é o estado a que, menos vezes, talvez, leva a obsessão do equilíbrio. Ao prescindir e reprimir a manifestação da sua própria dor, uns quantos de entre nós conseguem a maior vitória ao alcance de um membro da Epécie - a que é obtida sobre si. Mas não devemos esquecer que onde há um vencedor, há também um vencido. Que, neste caso, coindidem na identidade. Imune, por habituação, sob a máscara de impassibilidade que afivela, erradica o seu próprio sentir e bane aquele que, por reacção, poderia despoletar. Fica, então, bom para pendurar na parede.
De Augusto Ricardo:
ÂMAGO
Tu, que julgas entender
a dor dos outros não sentindo a tua,
desconheces a pena que se oculta
e não se mostra escancarada e nua.
Andas decerto a compor
risíveis lances de farsa,
como se a dor alheia apenas fosse
leve sombra esmaecente
de promessa fementida,
sem grandeza e sem virtude
em que a pobre alma ferida
algumas vezes se ilude.
Por que não lembras aqueles
que não riem nem praguejam,
não gritam nem desesperam
de modo que os outros vejam?
Não é nos sorrisos tristes,
nem nos prantos, nem nas mágoas,
nem na ventura traída,
nem no furor das revoltas,
em que há negros pensamentos
de vinganças e de morte
que podes erguer a vida.
Preso a uma teia ilusória,
que o cerca e fascina, o Homem
julga apagar no silêncio
estigmas sombrios da sorte,
e quem não murmura queixas,
guarda as lágrimas, não chora,
é quase sempre o mais forte.
Mas o ser que assim procede
sem revelar aos estranhos
os seus males e os seus prantos
e esquece a dor que sofreu,
não se lastima nem ri,
é talvez raro entre tantos
e entre tantos se perdeu:
- não morreu só para os outros,
morreu também para si.
Testemunhado por «O Artista Sofredor», de
Moser e «Silêncio», de Chris Langstroth.
4 Comments:
At 2:19 AM, Viajante said…
"Prescindir e reprimir" que ainda assim, diferem. Uma suspende, a outra põe coisas em cima, esconde.
A apatia como ausência de paixões, de emoções. No sentido da impassibilidade,insensibilidade, que me fazem lembrar os estóicos e um estado de espírito ideal a ser alcançado - esse «ideal» seria a natural aceitação dos acontecimentos, de abolição das emoções, de ausência de paixões.
Nada se deseja, nada se espera, de nada se queixa, nada supreender... e de nada se alegra.
O preço ou o caminho da libertação, dir-se-ia. Ou do entorpecimento.
Mas a vitória sobre Si carece de ser vitória de si? e de haver vencidos? prefiro o ganha-ganha a um ganha-perde :)
Ah, e a leitura ao entardecer fica bem. Aliás, leitura fica bem a qualquer altura (nesta madrugada, também).
At 9:08 AM, Paulo Cunha Porto said…
Viajante da Madrugada:
Também pensei nos estoicos, ao tocar a impassibilidade. Mas penso que a lamentada no poema é uma outra, que não se permite a flutuação etérea possibilitada pela reflexão frutuosa. A tal que, à custa de reprimir, pode espartilhar e fazer murchar a capacidade de sentir, ao ponto de desumanizar o "Eu" da forma que imaginei apenas com préstimo para ornamentar um muro.
Quem não prefere o ganha-ganha? Infelizmente, alguns comportamentos que nos impomos mais não dão do que um perde-perde.
Beijo, que, em Vós, é ganho irrefutável.
At 1:18 AM, Viajante said…
"Quem não prefere o ganha-ganha? Infelizmente, alguns comportamentos que nos impomos mais não dão do que um perde-perde"
Que nos impomos? por vontade e livre deliberação? é ganha-ganha de resultado, mesmo que no processo pareça perde-perde.Ou a ser perde-perde, pode trans-formar-se no pólo oposto. Afinal, aprende-se algo, certo?
beijos, noutra madrugada
At 11:16 AM, Paulo Cunha Porto said…
Eu diria, Oh viajante, que nos impomos essas condutas por outro género de fraqueza, a de nos queremos exaustivamente coerentes com uma imagem de contenção, que acaba por deixar de ser imagem para ser dique que, represando a capacidade de reacção, nos insensibiliza.
Certíssimo quanto ao ganho. Desde que a ele consigamos chegar.
Beijos em vista às Mais Belas das Madrugadas.
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