O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Monday, March 27, 2006

Leitura Matinal -308

Os restos do torreão irredutível que, em qualquer luta espiritual,
a aspiração de uma unidade projectada quer impor às múltiplas pessoas que latejam no íntimo, como via única para a construção da personalidade, acaba, com a passagem do seu tempo, se houve talento ou génio nesse confronto, por reconverter-se em local de picnic para visitantes devotos ou ingénuos, mais ou menos fascinados, em busca de diversão no lugar onde imperou a absorção, ainda que cindida.
Singular e plural, jogatana de nomes e coisa nomeada, humana é, mas, dissolvida, ameaça perder os traços da humanidade reconhecível, que não os de objecto de culto? Às graças que se arvorassem como leves capas de uma cela, pode-se contrapor a completa seriedade da opção pluripessoal, com o mergulho que invalide as veleidades do retorno. O que leva a
máscara a ser a libertação de um sistema de predomínio unilateral sobre pretensos comparsas menores. O que há de terrível na vontade de alteração das configurações ontológicas é a eliminação do carácter lúdico de um mero jogo de olhares, em prol da perenidade e autenticidade das edificações paralelas, as tais que se não encontram e menos se fundem. Mas todo este combate arrasante acaba por consagrar uma verdade que muitas vivências menos ricas já descobriram: a relevância da adequação de uma chave para o "Eu" encontra total dependência no simples facto de se ter alguém à espera.
De John Wain, a propósito de Pessoa:

O que será o Eu? Exclamei.
Anda, mostra-me onde mora.
Com que entregas de dinheiros
me quer comprar o fratricídio?

Eu sei que tenho irmãos
tímidos que me assombram a morada;
chegam quando menos se prevê,
partem para dar consolo a outra gente:

e algumas vezes eu e eles
trocamos de nomes e de rostos
e passeamos por sítios conhecidos
sob um céu que vai mudando.

Em mim, um Eu quer ter-me prisioneiro
ruminando esta massa de sonhos
esquecendo os raios de luar selvagem
e as tormentas que fui capaz de dominar.

Ergue uma torre de espessas paredes
selada com um nome;
a torre ficará inalterada
mas o nome há-de perder o seu domínio.

Tens que ser uno e singular
recusa o espírito que flui
no crescimento ou na agonia
não consintas nenhum companheiro

e descobre quando a noite cai
que viajaste em volta, em volta
de uma porção árida de terra
e não andaste por campos nem cidades

O poeta olhou a chave
que rodava na porta do Eu,
olhou o tecto, paredes e chão
desconfiado e de soslaio

recusando a decisão definitiva
sobre a máscara ou o diagrama
o «isto sou eu» fechado com um selo:
a sua voz plural era precisa.


Multiplicado por «Eu-Não Eu - Ouro -Azul - Vermelho»,
de Sandra Sunnyo Lee, «Prisioneiro», de Velizas Krstic
e «Máscara«, de Ben Shahn.

2 Comments:

  • At 5:19 PM, Blogger Viajante said…

    Curiosamente, para Freud, "sujeito" parece ser (algumas vezes) um termo que se refere a um coletivo e não a uma unidade... uma pluralidade de um "tipo especial".

    Cada um "representa" o que sente, vê, ouve - a dizer de modo diverso, entre o mundo das sensações e o das representações coloca-se o da linguagem que espelharia, mais ou menos (in)corretamente, aquilo que é sentido.
    E pensado, claro.

    Às vezes, sem existir distância entre o que se sente e o que se é, entre aquilo que se representa e aquilo que representa, a pessoa não é qualquer coisa anterior ao sentido, nem qualquer coisa anterior ao pensar. É uma pluralidade identificatória, diriam alguns, de ter vários "eus", organizados de diversas maneiras, em função dos sentimentos, das descrições, das sensações, das razões, das causas ou das justificativas que damos para agir ou ver de tal ou qual maneira.

    E se nenhum desses "eus" fôr mais verdadeiro do que o outro; nenhum deles detiver a identidade per si; se as pessoas não fôrem cebolas (de sucessivas camadas) mas antes prismas ou de teias narrativas de si (de integração das camadas)?
    Até pode pensar-se que não existe um profundo ou um superficial em si, assim como não existe um verdadeiro e um falso "eu" em si.

    A pessoa é uma movimentação constante de re-descrições de si e dos outros. O poder performativo da linguagem, ainda por cima, é capaz de alterar estados anteriores tanto quanto de re-tecer.

    Finalmente, o «eu» pode sofrer de «economia psíquica» (risos)e decidir ocupar uma posição fantasmática ou desejante, mais esta ou mais aquela...

    Obrigada pelo poema.
    Beijo plural.

     
  • At 10:10 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Plúrrima Viajante:
    Todas essas valências desdobrantes do eu podem bem ser constatáveis, como diferenças do tom em que se executa a partitura que é cada individualidade. Sem que as notas difiram, ao ponto de poder ser considerada música diversa, uma outra melodia. Quando isto sucede e um novo "eu" se destaca, ou até se opõe, a outros "eus" seus contemporâneos, com disseminação de identidades - que não apenas de sensações de si - é que se pode colocar, julgo, o problema da autenticidade. Mas para não relevar do puro domínio da esquizofrenia, ou da arte, tão perigosamente dela próxima, parece-me essencial reportar a acompanhante dessa vida. Caso contrário, sombra de fumo, como titulou outro Poeta.
    Ao contrário do Vosso saber e, ousaria dizê-lo, dos beijos que de Vós esperasse.

     

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