Leitura Matinal -254
Sendo o elemento do qual se necessita, mas cujo carácter nocivo, quando não domado, é mais perceptível, o fogo é a entidade ideal
para constituir-se como emblema da ambivalência do exterior, afinal nada mais do que a da receptividade humana levada ao extremo. A mesma que depende da protecção e do mimo, enfim saciando-se, chorando pelo leite, ou repelindo o seio materno, quando satisfeita. Assim, quando na companhia ambicionada, o fogo pode
tanto ser a metáfora do sentimento que a ela une, como a condição que a afasta tornando visível a intromissão dos outros, porque a eles fomos tornados visíveis pela luz das chamas. É que gostando de heroicizar os nossos sentimentos com ardentes imagens de perigo, a nossa grande urgência é o conforto. O nosso, que não
prescinde do calor; e o dos que nos rodeiam, se tivermos o egoísmo limado pela urbanidade, ou, ao invés, por via dele quisermos reservar o momento único a quem único é, não proporcionando como espectáculo o que está reservado à mais íntima das partilhas. No fim de contas, a falha em articular os nossos desejos com os dados do momento, expressa na queixa do poema, é feliz resumo da natureza e condição humanas.
De Ibn Sâra, editado em português por Adalberto Alves:
cai a noite.
sob o manto da sombra
o braseiro é um bálsamo
que sara o aguilhoar
dos escorpiões do frio.
ardente, talhou as mantas,
o nosso cálido abrigo
onde frio se não consente.
o incêndio na lareira
(nós olhando fascinados
e a grande taça de vinho
que vai passando em redor)
mal nos permite a intimidade
e logo nos afasta.
é como mãe,
que umas vezes amamenta
e outras nos retira o peito.
congraçado numa união tremenda com
«Fogo», de Sidney Goodman, «Fascinação»,
de Christine Malaurie e «Aporia da Intimidade»,
de Jan Esman.
para constituir-se como emblema da ambivalência do exterior, afinal nada mais do que a da receptividade humana levada ao extremo. A mesma que depende da protecção e do mimo, enfim saciando-se, chorando pelo leite, ou repelindo o seio materno, quando satisfeita. Assim, quando na companhia ambicionada, o fogo pode
tanto ser a metáfora do sentimento que a ela une, como a condição que a afasta tornando visível a intromissão dos outros, porque a eles fomos tornados visíveis pela luz das chamas. É que gostando de heroicizar os nossos sentimentos com ardentes imagens de perigo, a nossa grande urgência é o conforto. O nosso, que não
prescinde do calor; e o dos que nos rodeiam, se tivermos o egoísmo limado pela urbanidade, ou, ao invés, por via dele quisermos reservar o momento único a quem único é, não proporcionando como espectáculo o que está reservado à mais íntima das partilhas. No fim de contas, a falha em articular os nossos desejos com os dados do momento, expressa na queixa do poema, é feliz resumo da natureza e condição humanas.
De Ibn Sâra, editado em português por Adalberto Alves:
cai a noite.
sob o manto da sombra
o braseiro é um bálsamo
que sara o aguilhoar
dos escorpiões do frio.
ardente, talhou as mantas,
o nosso cálido abrigo
onde frio se não consente.
o incêndio na lareira
(nós olhando fascinados
e a grande taça de vinho
que vai passando em redor)
mal nos permite a intimidade
e logo nos afasta.
é como mãe,
que umas vezes amamenta
e outras nos retira o peito.
congraçado numa união tremenda com
«Fogo», de Sidney Goodman, «Fascinação»,
de Christine Malaurie e «Aporia da Intimidade»,
de Jan Esman.
8 Comments:
At 7:54 PM, Jansenista said…
Remete-nos para a Psicanálise do Fogo, de Gaston Bachelard.
At 8:06 PM, Viajante said…
O Fogo, de volta. Trazido pela Mão de alguém que, sendo Escorpião, o transporta de modo vulcânico.
Ah, vou cair nas peseudociências, que O Jansenista já me desviou de (repetir) citação a (um comum) Bachelard.
Lembro «O Mundo infestado de demónios», de Sagan, e sorrio ao escrever. Assumis que Sois Escorpião, e a partir daí, os traços - sim, o elemento é a Água. E ascendem Peixes. Deixai-me ir andando...
Signo de qualidade fixa, experiência emocional profunda, concentrada, em doses intensas.
Capacidade e força invulgares, e por isso, a capacidade para (se) regenerar e curar.
Água de lava, líquido que ferve, água que queima, tão reconfortante como intimidante. E mais, enfim, do controlo sobre o que alastra, seja fogo ou sede.
Sublinhe-se ainda a vocação para explorar o que está abaixo da superfície, resvalando para temas como o Poder, a Morte, o que está oculto. Em Fogo.
beijos, esperando sorriso de volta.
At 8:26 PM, Paulo Cunha Porto said…
Grande livro, Caro Jansenista. Já dele falei com a nossa Viajante.
Sublime Viandante:
Recordo cada uma das palavras sobre Bachelard, tanto dirigidas à água como ao fogo. Julgo, igualmente, lembrar o voluntarismo de quem se contrapõe como Touro-Tigre. E na generosidade que ambos Esses Signos Encarnam faço residir as boas qualidades que me estais atribuindo. Porque, se atendermos à literalidade dos ensinamentos desse hermético campo, as minhas são ambas pertenças da água. Que se sentem cobertas de petróleo na vizinhança do Vosso Fogo.
Sorriso partilhado, porque nos beijos assente.
At 9:24 PM, Viajante said…
Julgais lembrar, acertando num dos elementos do par - aliás, não fôra eu benevolente, seria quase insultuoso (risos francos). Qual Touro?! Moi? E eu tenho lá ar de "ser da Terra"? Leão, Senhor, numa conjunção duplamente felina em ambos os círculos, o de animais e o do zodíaco.
Esta é uma área interessante, sem dúvida, sobretudo nos registos mais antigos - e ademais, metafórica!
Saúdo-Vos, também pela constelação :)
At 9:28 PM, Viajante said…
Ah, um reparo - que este será dos post com comentários re-comentados :)
Assumindo que não é gralha (claro que não!), preferis Viadante? com sotaque italiano, presumo...
:)
At 9:46 PM, Paulo Cunha Porto said…
Mil Perdões, Senhora. Deve ter sido de algum traumatismo do desporto emanada a omissão da Vossa Leonina Condição. Este inconsciente de águia que em Vós nota todas as Perfeições... Mas esquecendo defesas de cor que julgo distantes de Vossos cuidados, reparo na dupla, que não dúplice, Faceta de Grande Gata, a mais invejável que imaginar se possa. Por elas Vos rendo a extasiada homenagem.
Não prefiro. Era uma lúdica Variação sobre o Mais Belo dos Temas. E quanto ao acento italiano, creio já Vos haver dito que um quarto e mais uns pozinhos de mim vêm de lá. Mas Viajante sois para deslumbre de todos nós.
At 10:16 PM, Viajante said…
Gargalhada! Tendes toda a razão... essas defesas de cor e des-porto, estão mesmo longe das minhas pré-ocupações. Gosto dos Felinos, ainda que nunca os vista de verde! Mera coincidência.
A esse "um quarto e uns pozinhos" deixo, daqui a pouco, um post a propósito, sabendo que ligais mais à substância do que à mão que escreveu o poema ou o texto.
Em retribuição de o Mais Belo dos Temas, ainda assim, vale uma mão-de-escritor que tenta!
Vénia :)
At 10:22 PM, Paulo Cunha Porto said…
Mas um "post" Vosso faz-me renegar qualquer dos meus princípios, começando pelo que por Vós foi citado...
A Mão... Ah, Essa Mão!...
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