Leitura Matinal -206
Duas coisas há, por vezes uma da outra inimigas, que têm em comum não suportar demasiada explicação pelos seus Autores: a Ironia e a Poesia. Desta, que é o que hoje interessa, não releva só a arte do Poeta, mas também aquele "quê" que move e comove, ou, pelo menos, cativa. É que a grande distinção que
aparta a Poesia da Justiça e da Ciência reside na ausência de imparcialidade. Poderá ser mais ou menos contida, distanciada ou cortante. Nunca é possível sem opção emotiva perante um dado percepcionado, embora os poetas que não pertencem às escolas românticas a possam camuflar sob o manto de uma serenidade artística que simule ausência de emotividade. Está, por conseguinte, parte da matéria prima ao dispôr de todos, Parte porque a receptividade do Poeta é também um minério a garimpar, como o é o momento em que o Leitor se sente tocado, não se trata de extractor e consumidor, autónomos de uma existência olímpica, como se defende no poema que publico. Mas tem ele o grande mérito, além da carga estética intrínseca, de poder funcionar como mito mobilizador daqueles que hesitam em dedicar-se ao Estro, com receios pueris de já não ser possível poetar.
De Gustavo Adolfo Becquer, pelo inevitável José Bento:
Não digais que, esgotado o seu tesouro,
sem ter assunto, emudeceu a lira.
Poderá não haver poetas, mas sempre
haverá poesia!
Enquanto as ondas pela luz beijadas
pulsem embevecidas,
enquanto o sol as nuvens tão dispersas
de fogo e ouro vista,
enquanto o vento leve em seu regaço
perfumes e harmonias,
enquanto houver no mundo primavera,
haverá poesia!
Enquanto a ciência não possa descobrir
as nascentes da vida,
e no mar ou no céu haja um abismo
que ao cálculo resista,
e, ao avançar, a humanidade ignore
para onde caminha,
enquanto houver mistério para o homem,
haverá poesia!
Enquanto sinta alguém sua alma rir
sem que os seus lábios riam,
enquanto alguém chorar, mas sem o pranto
a turvar-lhe as pupilas;
enquanto a cabeça e o coração
a batalhar prossigam,
enquanto houver memórias e esperanças,
haverá poesia!
Enquanto houver uns olhos que reflectem
outros olhos que os fitam,
enquanto a boca responda a suspirar
aos lábios que suspiram,
enquanto sentir-se possam ao beijar-se
duas almas confundidas,
enquanto exista uma mulher formosa,
haverá poesia!
As obras reproduzidas são «Harmonia de Novembro», de
Theodore Clement Steele e «Mistério», de Amehit Vart.
3 Comments:
At 12:17 PM, Flávio Santos said…
Bela escolha. Parabéns.
At 12:30 PM, Sandokan said…
...enquanto houver "Misantropo" na blogosfera, haverá poesia!
At 8:10 PM, Paulo Cunha Porto said…
Obrigado, Amigos Meus. O poema é bom; e bom é receber elogios por tabela.
Abraços.
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