O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Wednesday, December 07, 2005

Leitura Matinal -202

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O desconhecimento que o conhecimento revela, se o é verdadeiramente, traz a melancolia do balanço a todo o que a vaidade molda sem cegar: é a dura contrapartida, em versão posta em dia, da eterna aspiração ao que se não tem. Antes, o que ainda se procurava obter. Agora, o que se sabe
perdido, nem que tenha sido a ilusão, essa força motivadora. E, sendo o mais imodesto dos homens aquele que escreve, a fonte a que vai buscar o precioso líquido com que mantém aceso o vício de se mostrar, acaba por ser a sua própria frustração, assim pervertida de tépida clarividência em enganadora efabulação, mesmo que confesse tudo e mais alguma coisa.
"O cansaço, ah, o cansaço é prestigiante". Mas se este cansaço de mim fosse só expediente para cativar! O pior é ser o braseiro que lentamente tosta a generosidade, pois, ao mesmo tempo que abre os olhos da Fé, faz correr o risco de considerar, indiscriminadamente, todas as fés e, acima de tudo, abstrair do que Quem ao lado está possa dar. Com uma excepção: o apaziguamento momentâneo dessa desencantada mas acrescida pressa de viver, pela qual o egoísmo recusa o óbolo do respeito, sepultado sob as argilas inelutáveis do uso.
Há um poema que é em Génio o que o misantropo é em esboço tosco e falho. Mas a leitura sabe tão, tão bem...
Fiquemo-nos com ele, Manuel Machado, traduzido por José Bento:

ÚLTIMA

Concedeu-me a experiência
essa clássica ignorância
que não possui a fragrância
do primeiro não saber.
Oh a ciência da inocência!
Oh a vida empedernida!...
Desde o princípio da vida
nada fiz senão perder.

Já tenho os olhos manchados
de ver tudo quanto é feio.
Não cria... E agora creio
em tudo e em algo mais.
Quis, é certo, tudo ser
e se algo sou já nem sei...
Porém nunca acreditei
nos que me gabam, jamais.

Escritor irremediável,
tenho a obsessão maldita
da tão vil palavra escrita
neste odioso papel.
E o meu engenho - o admirável! -
de meu martírio se cria...
Dele e da neurastenia
levo a alma à flor da pele.

Magoado, mas sem dores
Amoroso, sem mulheres.
Libertino, sem prazeres,
rendido, sem competir.
Ando, amante sem amores,
de juventude apodrecida,
pela feira desta vida,
sem chorar e sem me rir.

A glória... - para amanhã!
E o dinheiro? Eu não quero
prazeres pelo meu dinheiro...
Minha vontade... É verdade!
Tudo se ganha, se é sã;
rasa montes, seca o mar...
Mas só parvos pude achar
entre os que têm vontade.

E agora, a meio do caminho,
também me cansa o acaso.
...Perdi o ritmo de meu passo,
estou farto de caminhar.
A vontade e o destino
daria eu por coisa pouca...
- E eu...
..............- Cala-te. A tua boca
é somente pra beijar!


A pintura é «Entardecer/Velhice», de John Newcomb.

2 Comments:

  • At 4:57 PM, Anonymous Anonymous said…

    Generosidade a sua, que paralelos maiores ou menores não distingo, para além de me ter sabido 'tão bem', - também!
    Bem haja.

     
  • At 10:12 PM, Blogger Paulo Cunha Porto said…

    Ainda bem que agradou. O Manuel Machado era um grande poeta e é pena que por cá seja menos conhecido do que o Irmão, António.

     

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