Leitura Matinal -169

É traço intrínseco da natureza humana oscilar entre a
distracção absorta em face do que nos rodeia e a incomodidade
que nos é transmitida pela precisão dos objectos exteriores,
quando desconformes ao que, inconscientemente, deles
esperávamos. E dessa invasão opressiva surge o despertar,
outra intranquilidade que fazemos por manter, por nos
sentirmos vivos com a busca e temermos a saciedade, ao
ponto de ignorarmos respostas que extingam a interessada
investigação que move o nosso intelecto e o nosso interesse.
Até que um dia, «há sempre um dia...», sobrevenha desistência
ou fadiga e as perpétuas tentativas de decifração que fomos
protagonizando se vejam substituídas pela sujeição às
figurações estabelecidas, sem mais delongas.
Meditação que me impeliu à releitura do poema de Helena
Carvalhão Buescu:

Diz-se das coisas que existem,
e no entanto elas perfilam-se às vezes,
diante dos nossos olhos,
com uma nitidez que, de tão sombria, logo assusta.
Pode ser um sopro, uma palavra só,
ou uma flutuação tão lenta que arrasta, ao corpo,
o conhecimento de uma distãncia fugaz,
como quando passam e não dizem,
sequer, de onde olham o que olham.

Assim nós passamos, sem quase querer, por paisagens de vento
e marés batidas, notas que estendemos
por dentro da garganta,
quando a voz se ergue a perguntar porquê, e como, e quando,
todas as letras de um alfabeto antigo
que só soletrando aprendemos, não conhecendo nunca.
Divagámos antes, não soubemos, ou não quisemos perceber.
mas o sol é mediano, crua a luz do que ensombrece,
e morte dá no desencanto.