Leitura Matinal -147

Quando uma preocupação passa a preencher todos os momentos
disponíveis do pensamento é raro ver-se a solução, mesmo que
ela esteja mesmo ao virar da esquina. Entre os piores, a dor de não
se ser como os outros, ou de não poder fazer como os outros, pode
toldar a dosezinha modesta de imaginação que constitui a maior das
libertações. Então o marasmo vence qualquer projecto de resolução
e a plena experimentação da vida fica adiada. Por vezes, entretanto,
um clic, ou um acaso, substituem o que poderia ter sido o produto de
engenho próprio. E, nesse ponto, à sorte, ou ao destino, é votada a
gratidão que deveria caber a um mais simples agente imediato, de
que o anel por razões más e outras boas tem sido sempre um símbolo,
no Ocidente. De como não há coisas sem importância no duro quadro
da opressão e libertação interiores de cada qual,
dá-nos Adília Lopes

O CASO DOS BRINCOS

O caso dos brincos deu-se numa casa
onde as meninas não tinham
as orelhas furadas
por o pai
que tinha feito em Moçambique
campanha com o Mouzinho
contra o Gungunhana
achar próprio de pretos o costume
de furar as orelhas
as meninas cresceram com as orelhas
por furar
coisa de que se envergonhavam um pouco
ao verem todas as suas amigas usar brincos
quando a velha tia morreu
uma velha tia
que mandava pela criada
um pacote de amêndoas e dez tostões
no Domingo de Páscoa
de cada ano
por pensar que as meninas eram só uma
e não duas
as duas meninas herdaram
um par de brincos muito bonitos
que fazemos nós com os brincos
pensaram as meninas
e durante muito tempo deixaram os brincos
no estojo deles
um dia um primo ourives
sugeriu-lhes que transformassem
o par de brincos em dois aneis
as duas meninas acederam de boa vontade
ficou cada uma com o seu anel
e não se cansaram de espantar
com o destino que tudo encadeia e concerta
se tivéssemos as orelhas furadas
só poderíamos usar o par de brincos à vez.