Leitura Matinal -100
Quem tenha a sombra por coisa ambígua vê bem o filme,
mas só parte dele. Pois, como é elementar, a ambiguidade
reside no homem. Não falo na descodificação de figurações
obscuras, em que o receptor permaneça indeciso quanto à
identidade do que é projectado. Afinal, essa é uma questão
de habilidade, quer na criação, quer no reconhecimento: as
sombras chinesas constituem um passatempo tanto mais sucedido
quanto... mais clara for, para o espectador, a propriedade da
silhueta.
Mas o Homem, frequentemente, elevou a sombra por causa das suas
próprias fragilidades. Ela era a garantia de que se não encontrava
sózinho. Com ela se desculpava, quando a aproximava da presença do
Diabo, dando desde logo por adquirida a sua impotência em resistir
à tentação de quem lhe era tão próxima e tão persistente companhia.
A integração no tema do "duplo" trazia ainda outro consolo: o de se
supor digno de ser copiado - uma clonagem primitiva.
E, na civilização contemporânea, as grandes estrelas, a parte da
Humanidade idolatrada pelo resto, procuram multiplicar-se pelas
plurais focagens de holofotes. Nas cerimónias de entrega de prémios
de Hollywood cada actor vê no palco duas sombras de si. Nos campos
de futebol, se a luz é proveniente de torres, cada atleta é acompanhado
por quatro. Mas também o homem comum, detentor de uma só, se sente
reconciliado ao notar a ampliação de si que, a certas horas do dia,
a sombra permite.
Já na antiguidade grega, procurando garantir uma imortalidade também
aos maus ou aos vulgares, se dava o Hades, uma espécie de Inferno
raquítico, como o Reino das Sombras.
Até os animais irracionais gastam o seu tempo com elas, procurando
persegui-las, ou reagir aos movimentos que lhes vêem.
Por fim, o grande desafio que o homem moderno se colocou, ou seja
o auto-conhecimento. A maioria de nós, hoje, abdicou de ser boa, para
passar a querer esse faustiano e fraudulento saber que é acumular
mais dados de si. Sabe que nunca o conseguirá, enquanto for
assombrado por esse companheiro de sempre, desconhecido e
silencioso, para onde recambia, a la Jung ou Stevenson a parte menos
assumível que se vai pressentindo. Daí que ame a sombra, porque só ela
lhe transmite a completude. Daí que desconfie dela, porque não confia
por inteiro na descodificação com que, racionalmente, a tenta desmontar.
Moral da história: o único homem mais rápido que a própria sombra
é Lucky Luke. Mas também isto é uma falácia: por muito rápida que
corra a luz, todos o somos. E daí brota o nosso desconforto.
Para que seja condignamente comemorada a
centésima publicação de poesias, neste canto
das «Leituras Matinais», avançamos com Almada
Negreiros:
A SOMBRA SOU EU
A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou o que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
mas só parte dele. Pois, como é elementar, a ambiguidade
reside no homem. Não falo na descodificação de figurações
obscuras, em que o receptor permaneça indeciso quanto à
identidade do que é projectado. Afinal, essa é uma questão
de habilidade, quer na criação, quer no reconhecimento: as
sombras chinesas constituem um passatempo tanto mais sucedido
quanto... mais clara for, para o espectador, a propriedade da
silhueta.
Mas o Homem, frequentemente, elevou a sombra por causa das suas
próprias fragilidades. Ela era a garantia de que se não encontrava
sózinho. Com ela se desculpava, quando a aproximava da presença do
Diabo, dando desde logo por adquirida a sua impotência em resistir
à tentação de quem lhe era tão próxima e tão persistente companhia.
A integração no tema do "duplo" trazia ainda outro consolo: o de se
supor digno de ser copiado - uma clonagem primitiva.
E, na civilização contemporânea, as grandes estrelas, a parte da
Humanidade idolatrada pelo resto, procuram multiplicar-se pelas
plurais focagens de holofotes. Nas cerimónias de entrega de prémios
de Hollywood cada actor vê no palco duas sombras de si. Nos campos
de futebol, se a luz é proveniente de torres, cada atleta é acompanhado
por quatro. Mas também o homem comum, detentor de uma só, se sente
reconciliado ao notar a ampliação de si que, a certas horas do dia,
a sombra permite.
Já na antiguidade grega, procurando garantir uma imortalidade também
aos maus ou aos vulgares, se dava o Hades, uma espécie de Inferno
raquítico, como o Reino das Sombras.
Até os animais irracionais gastam o seu tempo com elas, procurando
persegui-las, ou reagir aos movimentos que lhes vêem.
Por fim, o grande desafio que o homem moderno se colocou, ou seja
o auto-conhecimento. A maioria de nós, hoje, abdicou de ser boa, para
passar a querer esse faustiano e fraudulento saber que é acumular
mais dados de si. Sabe que nunca o conseguirá, enquanto for
assombrado por esse companheiro de sempre, desconhecido e
silencioso, para onde recambia, a la Jung ou Stevenson a parte menos
assumível que se vai pressentindo. Daí que ame a sombra, porque só ela
lhe transmite a completude. Daí que desconfie dela, porque não confia
por inteiro na descodificação com que, racionalmente, a tenta desmontar.
Moral da história: o único homem mais rápido que a própria sombra
é Lucky Luke. Mas também isto é uma falácia: por muito rápida que
corra a luz, todos o somos. E daí brota o nosso desconforto.
Para que seja condignamente comemorada a
centésima publicação de poesias, neste canto
das «Leituras Matinais», avançamos com Almada
Negreiros:
A SOMBRA SOU EU
A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou o que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!
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