Leitura Matinal -286
Se, no terreno da intimidade, as recordações são os troféus de caça
que podemos pendurar na parede da nossa biografia, a diferença elementar, no sentido grego do termo, entre o prazer e o amor poderá bem ilustrar-se pela diversidade de reacções com que encarámos o progressivo desvanecer dessas realidades rememoradas em que nos aplicámos.
A vitória momentânea sobre a languidez da falta, coeva das alheias tristezas que assentam, para cada um, na menor dignidade da escassez, se preenchida, momentaneamente, pelas fontes de luz, calor e cores das absorventes andanças do prazer - que raro deixam espaço para outras ocupações mentais -, não obtém inteira correspondência quando está presente o tributo verdadeiro e mais alto do afecto.
Pois que doentio ele é, dizem-no os poetas, que se querem os cientistas do sentimento. O que, velado, se torna para os outros opaco e é, para o amante sincero, simplesmente diáfano, pois tal é a sua osmose com o esplendor passageiro do Amado, que logo o toma a contrapartida da delícia que é o senso da
fatalidade da decadência do Belo que hoje contempla, onde teme a metáfora do declínio do sentir que por ora o domina, embora se entretenha, continuadamente, a desmentir-se. Assim, na sala da maior profundidade de nós esse testemunho da mais bela das caçadas não desperta, ao contrário das demais cabeças empalhadas, a recordação consoladora do triunfo, mas antes a suave dolência do perdido.
De John Keats, traduzido por Fernando Guimarães:
ODE À MELANCOLIA
Não, não te aproximes das águas do Letes, nem queiras recolher
o vinho generoso do acónito, cujas raízes estão entrelaçadas;
evita que a tua fronte pálida se deixe beijar
pela beladona, as vermelhas bagas de Prosérpina;
não teças o teu rosário com as sementes dos ciprestes,
nem deixes que o escaravelho ou a borboleta nocturna
sejam a tua fúnebre Psique, ou que se torne o mocho,
de penugem tão macia, o confidente da tua dor misteriosa
- porque, unida às outras sombras, uma sombra virá cheia de torpor
e há-de extinguir, dentro da tua alma, uma angústia vigilante.
Mas se, inesperado, o acesso da melancolia descer
do céu, como se fosse as lágrimas duma nuvem
que reanima as flores, cujas hastes tristemente pendiam,
e as verdes colinas oculta sob um céu primaveril,
então, deixa que se tranquilize a tua dor sobre uma rosa matinal,
sobre o arco-íris que surge junto às vagas e à areia salgada
ou sobre o esplendor esférico das peónias;
ou se, cheia de delícia, aquela que tu amas se exalta,
pega na sua mão delicada, deixa que ela delire
e bebe nos seus incomparáveis olhos, longamente.
Com ela vive a beleza - a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito há-de sentir amargamente
o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus nebulosos.
Cercado por «Uma Jovem Beldade Usando Um Véu Vermelho»,
de Gustave Doyen, «Véus», de Beverly A. Mitchell,
«Figura Coberta», de Rita Hall e a fúnebre imagem
da «Melancolia», de um cemitério.
que podemos pendurar na parede da nossa biografia, a diferença elementar, no sentido grego do termo, entre o prazer e o amor poderá bem ilustrar-se pela diversidade de reacções com que encarámos o progressivo desvanecer dessas realidades rememoradas em que nos aplicámos.
A vitória momentânea sobre a languidez da falta, coeva das alheias tristezas que assentam, para cada um, na menor dignidade da escassez, se preenchida, momentaneamente, pelas fontes de luz, calor e cores das absorventes andanças do prazer - que raro deixam espaço para outras ocupações mentais -, não obtém inteira correspondência quando está presente o tributo verdadeiro e mais alto do afecto.
Pois que doentio ele é, dizem-no os poetas, que se querem os cientistas do sentimento. O que, velado, se torna para os outros opaco e é, para o amante sincero, simplesmente diáfano, pois tal é a sua osmose com o esplendor passageiro do Amado, que logo o toma a contrapartida da delícia que é o senso da
fatalidade da decadência do Belo que hoje contempla, onde teme a metáfora do declínio do sentir que por ora o domina, embora se entretenha, continuadamente, a desmentir-se. Assim, na sala da maior profundidade de nós esse testemunho da mais bela das caçadas não desperta, ao contrário das demais cabeças empalhadas, a recordação consoladora do triunfo, mas antes a suave dolência do perdido.
De John Keats, traduzido por Fernando Guimarães:
ODE À MELANCOLIA
Não, não te aproximes das águas do Letes, nem queiras recolher
o vinho generoso do acónito, cujas raízes estão entrelaçadas;
evita que a tua fronte pálida se deixe beijar
pela beladona, as vermelhas bagas de Prosérpina;
não teças o teu rosário com as sementes dos ciprestes,
nem deixes que o escaravelho ou a borboleta nocturna
sejam a tua fúnebre Psique, ou que se torne o mocho,
de penugem tão macia, o confidente da tua dor misteriosa
- porque, unida às outras sombras, uma sombra virá cheia de torpor
e há-de extinguir, dentro da tua alma, uma angústia vigilante.
Mas se, inesperado, o acesso da melancolia descer
do céu, como se fosse as lágrimas duma nuvem
que reanima as flores, cujas hastes tristemente pendiam,
e as verdes colinas oculta sob um céu primaveril,
então, deixa que se tranquilize a tua dor sobre uma rosa matinal,
sobre o arco-íris que surge junto às vagas e à areia salgada
ou sobre o esplendor esférico das peónias;
ou se, cheia de delícia, aquela que tu amas se exalta,
pega na sua mão delicada, deixa que ela delire
e bebe nos seus incomparáveis olhos, longamente.
Com ela vive a beleza - a beleza que deve morrer,
e a alegria cuja mão se leva aos lábios
para dizer adeus; e, próximo, fica o doloroso prazer
que se transforma em veneno quando as abelhas dos lábios o aspiram.
Sim, no interior do próprio templo da alegria
está o altar soberano da melancolia, coberta de véus,
apenas visível para aquele que consegue provar
as uvas da alegria, com um impetuoso e puro desejo;
mas o seu espírito há-de sentir amargamente
o poder que ela tem ao ficar entre os seus troféus nebulosos.
Cercado por «Uma Jovem Beldade Usando Um Véu Vermelho»,
de Gustave Doyen, «Véus», de Beverly A. Mitchell,
«Figura Coberta», de Rita Hall e a fúnebre imagem
da «Melancolia», de um cemitério.
2 Comments:
At 9:01 PM, Viajante said…
Oh, «troféus de caça»? Hum.. e os que não são de caçador, mas de pescador? ou de semeador? ou decorrentes de generosidade?
E os triunfos de alma, de coração ou de espírito são realmente triunfos ou ganhos?
:)
At 10:10 PM, Paulo Cunha Porto said…
Não serão tão ilustrativos, porque imageticamente menos predatórios do que o labor dos entusiastas do mundo venatório.
Eu acharia que são os únicos que importam, mas a questão está em querer à viva força a conservação do passageiro, versus a a entrega ao duradouro, por muito inundante que ameace ser a perspectivação das erosões.
O segredo e a dignidade acrescida não estarão em como dar a volta?
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