Leitura Matinal -271

Bastas vezes a incapacidade para encontrar apelos ao interesse nos factos que nos são exteriores
e nos impedem de sobre eles trocar impressões radicam em centrar a reflexão na imagem que se quer fazer de si, sem reparar que, assim, se aprisiona o pássaro do interesse, o único condimento que permite suportar a vida, sem andar a vomitar aborrecimento nos melhores tapetes que são postos à frente. De tanto se insistir em olhar para o umbigo, tudo o que o
transcende vai-se tomando da complexidade que afasta, pois, ao alcance do pensamento, não resta mais do que os apetites, por muito inalcançados que alguns estejam, no que toca à satisfação. É o tipo de vício que leva a uma das mais corrosivas formas da inveja, não já a que pretende a menor felicidade alheia, unicamente
aquela, mais infantil, que pretende ser assunto e O assunto. Sendo desenganado pela orientação diversa dos interlocutores cai-se no estado de ensimesmamento que vai do spleen ao desespero, sem dar cavaco, ou passar cartão a tema outro que esse protagonismo obsessivo. Transformado numa assombração, o infeliz, incomodando com o uivo prolongado da angústia os outros, quase tanto como se inquieta, balançará entre a glória do fim ou a mediocridade da deambulação, soluções que exprimem, cada qual o desprezo pela outra, nessas noites de Lua Cheia que estendem os limites das sombras.
De Frank O´Hara:

ONTEM LÁ EM BAIXO NO CANAL

Dizes que tudo é muito simples e interessante
isso torna-me muito melancólico, como se lesse um grande romance Russo
estou tão aborrecido
é quase como ver um mau filme
se não for, mais frequentemente, como ter uma doença aguda no rim
valha-nos deus que não é nada no coração
nada relacionado com gente mais interessante do que eu
yak yak
que pensamento divertido
como pode alguém ser mais divertido que o próprio
como pode alguém não ser
podes emprestar-me o teu quarenta e cinco
só preciso de uma bala de preferência de prata
se não se pode ser interessante pelo menos que se seja uma lenda
(mas odeio essa trampa toda)


Vista da flor mais complicada do mundo por Yamiko
Ichikawa: «A Simplicidade da Orquídea»; e ainda...
uma esverdeada e expressiva figuração da inveja e
«Bala de Prata», de Jack Damer.