Leitura Matinal -262
A nossa má vontade contra a burocracia e a incompetência dela pendente acha-se tão justificada pelos factos, como desautorizada
pelas excepções que levantamos. Há sempre um conhecimento que retiramos da invectiva geral contra a ineptidão. Dado que somos dez milhões e cada um conhece vários ilustres funcionários, há margem para erguer um monumento ao sistema da mediocridade. Dizia Castilho: «O ignorar a sintaxe e a orthographia é um direito do cidadão, como outro qualquer direito. Os solecismos e barbarismos não podem ser processados, por não haver um procurador grammatical, assim como há um Procurador Régio, e um Procurador da Fazenda.». Na verdade, o semi-analfabetismo de um médio
funcionário tem um alcance nada desprezível, que se traduz em duas vantagens de tomo: exibindo as suas insuficiências, sossega superiores e colegas, que o verão como incapaz de abanar o sistem entranhado, como de ameaçar posições estabelecidas, ou em via disso. Por uma ordem de razões alternativas - ou é manifestamente incapaz de ir mais alto, ou, não o sendo, estará primordialmente vocacionado para o aperfeiçoamento pessoal, o que estabelece uma dilação do perigo. Mas a grande maioria dos casos alinhará pelo primeiro diapasão.
Resta a grande função externa. A de assegurar a dignidade do Estado, promovendo, com esse substituto da imaginação que é o manancial de formalidades, a intimidação do cidadão que, dirigindo~se ao seu departamento, pensava ser tudo fácil. A burocracia lembra-nos de que mesmo uma vida pacata não é um mar de rosas...
De Garcia Monteiro:
TALENTO BUROCRÁTICO
Palavra que o Eusébio é um rapaz astuto,
não é um imbecil, como há alguém que o pense.
Tinha um ar de quem anda em busca do Absoluto
e andava era a cismar na manga do amanuense.
Mal vagou o lugar foram dez cães a um osso,
e ele é que o abocou. Ora o comendador
(o tal que usa um grilhão pendente do pescoço)
influiu, mas o Eusébio inda operou melhor.
Foi aberto concurso, a bem da velha prática;
e o Eusébio (por si, sem ter quem o guiasse)
fez no requerimento onze erros de gramática -
sete de ortografia e quatro de sintaxe.
Assim li num jornal. Os outros concorrentes,
sem um erro sequer, estavam muito abaixo:
o Eusébio apresentou asneiras convenientes
e foi ele, bem visto, o que alcançou o despacho.
Ei-lo pois amanuense. Agora vai casar-se.
Comprou já chapéu alto e um valioso anel.
O pai gaba-o e diz: «É pena não formar-se!
Fazia-se dali um rico bacharel!.»
É um moço prendado e é justo o seu alarde;
e então (e é ele que o diz) não tem sequer um vício...
Não há quem puxe um D como ele no Deus Guarde,
nem quem faça também mais erros num ofício.
Em contas, nem falar; é mesmo prodigioso;
não conheço ninguém mais forte na tabuada:
aquilo é segurinho, exacto, escrupuloso...
três vezes três são seis; dez, noves fora, nada.
Em suma, é um zeloso, um óptimo empregado.
Foi acertada a escolha; e só me desconsola
que ele não possa ser mais bem utilizado.
Que pena! Uma aptidão que dava um mestre-escola.
Reforçado com imagens da oposta exigência dos exames
do funcionalismo chinês imperial e de «O Burocrata»,
de David Ross.
pelas excepções que levantamos. Há sempre um conhecimento que retiramos da invectiva geral contra a ineptidão. Dado que somos dez milhões e cada um conhece vários ilustres funcionários, há margem para erguer um monumento ao sistema da mediocridade. Dizia Castilho: «O ignorar a sintaxe e a orthographia é um direito do cidadão, como outro qualquer direito. Os solecismos e barbarismos não podem ser processados, por não haver um procurador grammatical, assim como há um Procurador Régio, e um Procurador da Fazenda.». Na verdade, o semi-analfabetismo de um médio
funcionário tem um alcance nada desprezível, que se traduz em duas vantagens de tomo: exibindo as suas insuficiências, sossega superiores e colegas, que o verão como incapaz de abanar o sistem entranhado, como de ameaçar posições estabelecidas, ou em via disso. Por uma ordem de razões alternativas - ou é manifestamente incapaz de ir mais alto, ou, não o sendo, estará primordialmente vocacionado para o aperfeiçoamento pessoal, o que estabelece uma dilação do perigo. Mas a grande maioria dos casos alinhará pelo primeiro diapasão.
Resta a grande função externa. A de assegurar a dignidade do Estado, promovendo, com esse substituto da imaginação que é o manancial de formalidades, a intimidação do cidadão que, dirigindo~se ao seu departamento, pensava ser tudo fácil. A burocracia lembra-nos de que mesmo uma vida pacata não é um mar de rosas...
De Garcia Monteiro:
TALENTO BUROCRÁTICO
Palavra que o Eusébio é um rapaz astuto,
não é um imbecil, como há alguém que o pense.
Tinha um ar de quem anda em busca do Absoluto
e andava era a cismar na manga do amanuense.
Mal vagou o lugar foram dez cães a um osso,
e ele é que o abocou. Ora o comendador
(o tal que usa um grilhão pendente do pescoço)
influiu, mas o Eusébio inda operou melhor.
Foi aberto concurso, a bem da velha prática;
e o Eusébio (por si, sem ter quem o guiasse)
fez no requerimento onze erros de gramática -
sete de ortografia e quatro de sintaxe.
Assim li num jornal. Os outros concorrentes,
sem um erro sequer, estavam muito abaixo:
o Eusébio apresentou asneiras convenientes
e foi ele, bem visto, o que alcançou o despacho.
Ei-lo pois amanuense. Agora vai casar-se.
Comprou já chapéu alto e um valioso anel.
O pai gaba-o e diz: «É pena não formar-se!
Fazia-se dali um rico bacharel!.»
É um moço prendado e é justo o seu alarde;
e então (e é ele que o diz) não tem sequer um vício...
Não há quem puxe um D como ele no Deus Guarde,
nem quem faça também mais erros num ofício.
Em contas, nem falar; é mesmo prodigioso;
não conheço ninguém mais forte na tabuada:
aquilo é segurinho, exacto, escrupuloso...
três vezes três são seis; dez, noves fora, nada.
Em suma, é um zeloso, um óptimo empregado.
Foi acertada a escolha; e só me desconsola
que ele não possa ser mais bem utilizado.
Que pena! Uma aptidão que dava um mestre-escola.
Reforçado com imagens da oposta exigência dos exames
do funcionalismo chinês imperial e de «O Burocrata»,
de David Ross.
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