Leitura Matinal -208

Dois egoísmos: o do tempo dos projectos, que só repara em si e o da idade madura que retira prazer, não sádico mas estético, de aspectos do sofrimento alheio. Dois egoísmos, o que ignora os Outros e aquele outro que, não os desconhecendo, não se comove com os padecimentos que não são seus. Dois egoísmos - um, o que monopoliza as faculdades do espírito

para satisfações futuras da sua individualidade, coisa que, optimisticamente, pensa existir já; o outro, ciente dos traços individuais que realmente existem, com os gostos à cabeça, não se força para se saciar amanhã, deixa-se ir, sorvendo no Presente as sensações que lhe agradam e abstraindo da Dor de onde elas se alimentam. É o perigo de promover a Estética a critério último da vida. Mas serão iguais estes dois egoísmos? Talvez não. Porque no segundo já se vive com os outros, não contra os outros. Já se olha para além do próprio umbigo e, se o fundo for bom, a qualquer instante, seja por upgrading das necessidades da Alma, seja por momento de Revelação, ou ainda de procura pessoal de realização, pela Ética - que só para os ingénuos é contrária à Estética -, se pode virar a página e mergulhar numa convivência Cristã, ou altruísta, que pode ser um primeiro passo para Ela. E desta forma, talvez nem haja ironia no terceto final do poema de William Carlos Williams, traduzido por José Agostinho Baptista:

PASTORAL

Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeira, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.

................Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.


As imagens reproduzem a maneira como Blake viu a Sensibilidade
e «Exercício Estético», de Anne Meltzer.