Leitura Matinal -145
A arte ou a reflexão? O mesmo homem que proscrevia a
poesia por a considerar corruptora da juventude, acabou
ele próprio por ser condenado pela mesma razão. Outros
dizem que terá sido por revelar os mistérios sagrados, mas,
para o caso, pouco importa. O que interessa é como num
espírito invulgar se pode opor o apelo aos sentidos ao puro
exercício do pensamento. Ou de como, no momento da grande
crise, as coisas mudam e se tenta promover a criatividade ao
lugar que sempre se quis ocupado pela especulação racional.
Porquê? Talvez pela razão perturbadora de a iminência do fim
estimular a necessidade de produzir o concreto, enquanto que,
ao longo da vida, o lugar dele exibia-se no próprio ser pensante,
ficando a vaga das aspirações atribuída à abstracção. Mas não
deixa de ser digno de nota que um homem que fizera todo um
sistema apoiar-se na ironia, tenha sido tentado a ver literalidade
no mais gelatinoso e plurivalente dos processos cognitivos: o
sonho. E nele a grande questão: o que é a Arte? E a resposta
repousante - "aquela para que mais virado se está". Mas pelo
sim, pelo não...
Vejamos como Vasco Graça Moura recriou Seamus Heaney e
UMA ARTE DA LUZ DO DIA
No dia do veneno, aos seus amigos,
Sócrates disse ter estado a escrever:
a pôr em verso as fábulas de Esopo.
Isto, não porque amasse a sabedoria
e advogasse a vida examinada.
A razão foi que ele tivera um sonho.
César, ou Herodes, ou Constantino
ou qualquer conta de reis shakespareanos
rebentando por fim como barragens
de panoramas originais submersos
a reerguer antes das cenas da morte -
pode crer-se nos seus crédulos sonhos.
Mas Sócrates, bem menos. Ou seja, até
dizer aos amigos que o sonho recorrera
por toda a sua vida, a repetir uma instrução:
Exerce a arte, arte que até então
julgou sempre que era a filosofia.
Feliz o homem, pois com dotes naturais
para dar-se à que está certa desde o início -
a poesia, digamos, ou a pesca;
as suas noites são sem sonhos; os seus
panoramas afundados levantam-se
e passam como a luz do dia
pela argola da cana ou o olho do amparo.
poesia por a considerar corruptora da juventude, acabou
ele próprio por ser condenado pela mesma razão. Outros
dizem que terá sido por revelar os mistérios sagrados, mas,
para o caso, pouco importa. O que interessa é como num
espírito invulgar se pode opor o apelo aos sentidos ao puro
exercício do pensamento. Ou de como, no momento da grande
crise, as coisas mudam e se tenta promover a criatividade ao
lugar que sempre se quis ocupado pela especulação racional.
Porquê? Talvez pela razão perturbadora de a iminência do fim
estimular a necessidade de produzir o concreto, enquanto que,
ao longo da vida, o lugar dele exibia-se no próprio ser pensante,
ficando a vaga das aspirações atribuída à abstracção. Mas não
deixa de ser digno de nota que um homem que fizera todo um
sistema apoiar-se na ironia, tenha sido tentado a ver literalidade
no mais gelatinoso e plurivalente dos processos cognitivos: o
sonho. E nele a grande questão: o que é a Arte? E a resposta
repousante - "aquela para que mais virado se está". Mas pelo
sim, pelo não...
Vejamos como Vasco Graça Moura recriou Seamus Heaney e
UMA ARTE DA LUZ DO DIA
No dia do veneno, aos seus amigos,
Sócrates disse ter estado a escrever:
a pôr em verso as fábulas de Esopo.
Isto, não porque amasse a sabedoria
e advogasse a vida examinada.
A razão foi que ele tivera um sonho.
César, ou Herodes, ou Constantino
ou qualquer conta de reis shakespareanos
rebentando por fim como barragens
de panoramas originais submersos
a reerguer antes das cenas da morte -
pode crer-se nos seus crédulos sonhos.
Mas Sócrates, bem menos. Ou seja, até
dizer aos amigos que o sonho recorrera
por toda a sua vida, a repetir uma instrução:
Exerce a arte, arte que até então
julgou sempre que era a filosofia.
Feliz o homem, pois com dotes naturais
para dar-se à que está certa desde o início -
a poesia, digamos, ou a pesca;
as suas noites são sem sonhos; os seus
panoramas afundados levantam-se
e passam como a luz do dia
pela argola da cana ou o olho do amparo.
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