Leitura Matinal -77

Quantas vezes não acordamos com a esmagadora
pressão dos desvarios e acidentes do dia a
impelirem-nos ao afastamento, à redoma que
nos faça, ainda assim, sobreviver, seja o vício
que faz mal mas sabe bem, seja a omisão das
sublimações que a arte oferece, restando-nos o
temporário refúgio na mais radical das rejeições,
à beira do rancor, cuja superação será o único
caminho para voltarmos a ser Homens dignos do
nome. Ilustrando o estado de espírito de lutos que
precede e, contrariando, permite a recorrente retoma
da harmonia,
De António José Forte:

RESERVADO AO VENENO

Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequenas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais
e esta noite
uma cratera para boémios
não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria
é um dia a mais ou a menos na alma
como chumbo derretido na garganta
um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos anos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras