Leitura Matinal -43
Sempre senti desconforto e fascinação diante dos espelhos.
Note-se, dos espelhos, não da minha imagem neles. E o
caso agravou-se, ao ouvir repetidamente as predições de
sete anos de azar a quem partisse um, atingindo o cume
quando vi o filme de Cocteau em que, passando por eles,
a Morte vem a este mundo buscar os humanos.
Tocando vários dos temas preferidos do Misantropo,
da solidão à limitação da espécie, dos perigos para a
lucidez à curiosidade legitimada, um belo e extenso
poema moralista, no sentido subtil do termo: na tradução
de Miguel Tamen, de Jorge Luís Borges,
OS ESPELHOS
Eu, que senti o horror dos espelhos
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um temor agita
E ante a superfície silenciosa
Do Ébano subtil cuja tersura
Repete como um sonho a brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao fim de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos
Espelhos de metal, dissimulado
Espelho de acaju que entre a bruma
Do seu rubro crepúsculo esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto
Multiplicar o mundo como o acto
Generativo, insones e fatais.
Prolongam este vão mundo incerto
Na sua tão vertiginosa teia;
Às vezes pela tarde os rodeia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. Se entre as quatro
Paredes da alcova há um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que encena n`alba sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Em esses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos
Lemos os livros, da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho. Que haja espelhos,
Que o usual e gasto reportório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
Deus (assim pensei) põe um empenho
Em toda essa inconstruta arquitectura
Que edifica a luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
Note-se, dos espelhos, não da minha imagem neles. E o
caso agravou-se, ao ouvir repetidamente as predições de
sete anos de azar a quem partisse um, atingindo o cume
quando vi o filme de Cocteau em que, passando por eles,
a Morte vem a este mundo buscar os humanos.
Tocando vários dos temas preferidos do Misantropo,
da solidão à limitação da espécie, dos perigos para a
lucidez à curiosidade legitimada, um belo e extenso
poema moralista, no sentido subtil do termo: na tradução
de Miguel Tamen, de Jorge Luís Borges,
OS ESPELHOS
Eu, que senti o horror dos espelhos
Não só ante o cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um impossível espaço de reflexos
Mas ante a água especular que imita
O outro azul no seu profundo céu
Que às vezes raia o ilusório voo
Da ave inversa ou que um temor agita
E ante a superfície silenciosa
Do Ébano subtil cuja tersura
Repete como um sonho a brancura
De um vago mármore ou uma vaga rosa,
Hoje, ao fim de tantos e perplexos
Anos de errar sob a diversa lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Determinou que temesse os espelhos
Espelhos de metal, dissimulado
Espelho de acaju que entre a bruma
Do seu rubro crepúsculo esfuma
Esse rosto que olha e é olhado,
Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto
Multiplicar o mundo como o acto
Generativo, insones e fatais.
Prolongam este vão mundo incerto
Na sua tão vertiginosa teia;
Às vezes pela tarde os rodeia
O hálito de alguém que não está morto.
Espia-nos o cristal. Se entre as quatro
Paredes da alcova há um espelho,
Já não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que encena n`alba sigiloso teatro.
Tudo acontece e nada se recorda
Em esses gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos
Lemos os livros, da direita à esquerda.
Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
não sentiu que era um sonho até ao dia
Em que um actor mimou sua felonia
Com arte silenciosa, num tablado.
Que haja sonhos é estranho. Que haja espelhos,
Que o usual e gasto reportório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.
Deus (assim pensei) põe um empenho
Em toda essa inconstruta arquitectura
Que edifica a luz com a tersura
Do cristal e a sombra com o sonho.
E Deus criou as noites, que se armam
De sonhos e as formas do espelho
Para que o homem saiba que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.
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