Leitura Matinal -292

É nos espaços alongados da aquosa extensão, com as colorações menos
perturbadas pela emergência de objectos que se ergam como obstáculos, que um indivíduo se deixa mais facilmente impregnar pela dimensão da Eternidade. Quem diz água poderia dizer planície, já que o que importa é a ausência da imediatez das pressões exteriores, que permite ao sujeito criar o próprio tempo e não andar subjugado pela lufa-lufa dos ponteiros e das buzinas, dos chamamentos e dos sinais horários.
É contactando com a agressão, sem fim conhecido, dos grandes sopros, que lhe deizam marcas mais tranquilas no rosto, que não as dos citadinos stress e contrapartidas, é tocando o pescado que, mau grado seu, conseguiu deixar-se morrer sem as angústias dos homens, os quais por outras redes se deixam apanhar, que o solitário decisor da sua rota e da sua faina
poderá relativizar os aspectos mais pontiagudos da Existência, sendo capaz de lhes captar o encanto, com a ajuda da musicalidade dos hinos que os louvam, mas relativizando-os quando as esperadas águas da estação própria os reduzam à sua natural escala - a da fraude que é a gritante reivindicação de absoluta perenidade da sua preponderância; esta não tardará a sumir-se, primeiro da vista, depois do ouvido e, por fim, da memória. Fique pois reduzido o Homem ao seu Encontro com o Essencial, pacificados que estão os caprichos, obrigados à cedência do seu lugar ao Querer.
De John F. Deane:

aos pés da torre o rio
espraia-se num estuário

um homem no rio tem de aparelhar o seu barco
nas margens da eternidade; ele torna-se no seu próprio
farol:nas peles oleosas e amarelas ele deve encaminhar
as saliências do leito na direcção do casco endurecido; ele
#permanecerá
horas e horas mascando o sal dos ventos,
capturando sabedoria e a macia carne
de alguns peixes

as montanhas,
como navios cursando até ao seu refúgio,
levantam-se cada dia no horizonte

pára
e escutar-lhes-ás
as murmuradas baladas
compostas em seu louvor

breve extinguir-se-ão
atrás do silêncio da chuva
até que penses na sua existência
- uma ilusão.

Percorrendo «Paisagem com um Barco», de Allart van
Everdingen, «Eternidade», de Belladora e «Lago e
Montanhas», de Lauren S. Harris.