Leitura Matinal -234
As dúvidas capazes de esmagar quem escreve, maxime quem escreve poesia, sobre a legitimidade da beleza e da forma nas escolhas temáticas
e no tratamento imagético respectivo, podem desembocar na tentação de, para salvar o essencial, que é a produção não enfeudada a delírios nefelibatas, vocalmente dissolver os afastamentos pronominais que criem obstáculos à assunção do sentir e ao abarcar do sentido do sofrimento. Gritando pela abstenção de estetizar a dor, está,
no entanto, o Autor a cair na ingenuidade básica que só é minorada pela preocupação de manter a qualidade da escrita, alimentando a ilusão de o fazer pela secundarização de aspectos da sua personalidade. O desenlace comprovará que, havendo espaço para conter um pensamento - e necessidade de o expressar -, a própria essência artística tudo sobreleva. Por muito que se tente apagar os fogachos com que o eu adorna o que vê e se tente demarcar de certas formas de escrita, a construção de um poema é sempre uma inapelável afirmação da individualidade.
O grito de Ingeborg Bachmann:
SEM ACEPIPES
Já nada me agrada.
Deverei eu
enfeitar uma metáfora
com uma flor de amendoeira?
Crucificar a sintaxe
sobre um efeito de luz?
Quem é que vai quebrar a cabeça com coisas tão fúteis?
Aprendi a entender as coisas
com as palavras
que existem
(para a classe mais baixa)
Fome
....Vergonha
............Lágrimas
e
..................Trevas.
Com o soluço impuro,
com o desespero
(e eu desespero ainda com o desespero)
por tanta miséria,
pelo estado do doente, pelo custo de vida,
sobreviverei.
Não descuido a escrita
mas a mim.
Os outros sabem
sabe Deus
o que fazer com as palavras
Eu não sou o meu médico assistente.
Deverei eu
prender um pensamento,
conduzi-lo à cela iluminada de uma frase?
Alimentar o olhar, o ouvido
com nacos de palavras de primeira qualidade?
Estudar a líbido de uma vogal?
Investigar a cotação erótica das nossas consoantes?
Terei eu,
com a cabeça desfeita pelo granizo,
com a cãibra da escrita nesta mão,
sob o peso de trezentas noites,
de rasgar o papel,
varrer as tramas de óperas de palavras,
destruindo assim: eu tu e ele ela isso
nós vós?
(Devo. Devem os outros.)
A minha parte - que desapareça!
Em complemento: a outonal «Felicidade Amortalhada»,
de Virginia Lee e «Metáfora», de Walter King.
e no tratamento imagético respectivo, podem desembocar na tentação de, para salvar o essencial, que é a produção não enfeudada a delírios nefelibatas, vocalmente dissolver os afastamentos pronominais que criem obstáculos à assunção do sentir e ao abarcar do sentido do sofrimento. Gritando pela abstenção de estetizar a dor, está,
no entanto, o Autor a cair na ingenuidade básica que só é minorada pela preocupação de manter a qualidade da escrita, alimentando a ilusão de o fazer pela secundarização de aspectos da sua personalidade. O desenlace comprovará que, havendo espaço para conter um pensamento - e necessidade de o expressar -, a própria essência artística tudo sobreleva. Por muito que se tente apagar os fogachos com que o eu adorna o que vê e se tente demarcar de certas formas de escrita, a construção de um poema é sempre uma inapelável afirmação da individualidade.
O grito de Ingeborg Bachmann:
SEM ACEPIPES
Já nada me agrada.
Deverei eu
enfeitar uma metáfora
com uma flor de amendoeira?
Crucificar a sintaxe
sobre um efeito de luz?
Quem é que vai quebrar a cabeça com coisas tão fúteis?
Aprendi a entender as coisas
com as palavras
que existem
(para a classe mais baixa)
Fome
....Vergonha
............Lágrimas
e
..................Trevas.
Com o soluço impuro,
com o desespero
(e eu desespero ainda com o desespero)
por tanta miséria,
pelo estado do doente, pelo custo de vida,
sobreviverei.
Não descuido a escrita
mas a mim.
Os outros sabem
sabe Deus
o que fazer com as palavras
Eu não sou o meu médico assistente.
Deverei eu
prender um pensamento,
conduzi-lo à cela iluminada de uma frase?
Alimentar o olhar, o ouvido
com nacos de palavras de primeira qualidade?
Estudar a líbido de uma vogal?
Investigar a cotação erótica das nossas consoantes?
Terei eu,
com a cabeça desfeita pelo granizo,
com a cãibra da escrita nesta mão,
sob o peso de trezentas noites,
de rasgar o papel,
varrer as tramas de óperas de palavras,
destruindo assim: eu tu e ele ela isso
nós vós?
(Devo. Devem os outros.)
A minha parte - que desapareça!
Em complemento: a outonal «Felicidade Amortalhada»,
de Virginia Lee e «Metáfora», de Walter King.
2 Comments:
At 11:43 AM, João Villalobos said…
Delírios nefelibatas!? :)
At 12:01 PM, Paulo Cunha Porto said…
Calma, não era nenhuma indirecta...
Abraço.
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