O Misantropo Enjaulado

O optimismo é uma preguiça do espírito. E. Herriot

Thursday, August 18, 2005

Leitura Matinal -91

Por muito reafirmado que seja o propósito de não
versar os azares da biografia, transpira sempre
do espírito criador para a obra algo do único de
si
, seja a deformação interior e inconsciente do
sentimento, seja qualquer outro despojo de que se
imponha, imprecisamente e sem cronologia, ao canto
necessário de quem escreve, da atmosfera amalgamada
da complexidade psíquica, à depuração que leva ao
de facto expresso.
O antologiadíssimo e glosado poema de Carlos Drumond
de Andrade:

NUDEZ

Não cantarei amores que não tenho
e quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo da vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, tão vago, tão estranho,
que, se regressa a mim, que o apascentava,
o duro suposto nele é cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
que dor se sabe dor e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto
da úmida assombração
que vem do norte
e vai ao sul, e, quatro, aos quatro ventos,
assusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda a sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha via
passarei sobre a relva debruçado,
a ver a unha curva que se estende,
ou se contrai e se atrai, além da pobre
área de luz da nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de amor que se despede.
O golfo mais dourado que circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de de serenos
desideratados, sublimes ossuários
sem ossos,
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez enfim, além dos corpos,
a modular campinas no vazio
da alma, que é apenas alma e se dissolve.

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