Leitura Matinal -222
Ao Luís Graça
Em tempo de balanços altura é de reconhecer o quão hipotecadas estão as nossas existências ao estatuto de impotentes da dor. Se na morte de um familiar ainda se aceita um alívio da contenção, raras vezes recenhecem os outros e reconhecemos nós
próprios a faculdade de chorar um amigo falecido. Refugiamo-nos nos tiques desajeitados que o convívio com outras relações do morto obriga, ainda assim gestos; que como gesto não gostamos de pensar a nossa voragem interior, a qual começa na abertura de horripilantes fendas no chão que pisamos e acaba na forçada melancolia.
Porque os sinais que emitimos "não podem" ser esses. Porque qualquer lamento mais expansivo é uma jeremíada fora do lugar, que só traz embaraço aos outros. É quando sentimos o ferrete desta perda que também não foi dissolvida no tempo nem gerada por opção do que perdemos, como essas outras mortes de amigos que emergem do afastamento e não originam lutas interiores que excedam o encolher de ombros oficial. Na morte física de um amigo Vemos a nossa pessoa coagida a fazer não sabemos o quê, mas, em todo o caso, a mostrar-se o menos possível. Enquanto que desejaríamos fazer não sei o quê, que fosse muito além do possível. Vivemos no decadente conflito que pensa ser a assunção da dor a exibição dela. Aquiles não se envergonhava de chorar Pátroclo. Mas vivia na Idade dos Heróis. Que não é a nossa.
De Fernando Lemos:
Quando morre um amigo
os telhados descem de nível
para fugirem tôrres de moscas
e o ar mastigar o nervo da língua
perdem-se as mãos nos bolsos
com vergonha
e o vento arranha o pente dentro dos cabelos moles
os animais engolem ninhos nos museus
e vão romper as estradas de couraças roídas
quando morre um amigo
caem por copos os sobejos da Natureza
os acordeões de barro ficam mesmo roucos
e suspendem-se no quarto com cheiro a farmácia
morre um amigo
e é um fim de espectáculo
rolam as solas de madeira sôbre a borracha
vêm os corvos urinar nos crânios dos deuses
estabelece-se uma enorme ventania
desenhando ladrilhos entre ossos
gritam mulheres deitando espelhos ao mar
enquanto as crianças mudam apenas de jardim:
é o ninguém baixar quando rolam as moedas
quando morre um amigo sinto vergonha
as bruxas de custódia em punho
dão horas particulares
e os cais motorizados fortificam-se
quando morre um amigo
ficam as nuvens de fora do alcance do azul
perco a condução
encosto o nariz na vitrina comercial
ocultando com o andaime as feridas
com que a vida me costuma vacinar
olho o céu quando morre um amigo
para criar um abismo entre dois pés
olho as paredes que são sempre quatro
e cabe-me a vida dentro de um copo
sobejos da Natureza
o frio vem tarde nas torneiras distantes
sempre que morre um amigo
sempre que morre um amigo
é um fim de espectáculo
Seguem também «Morte de um Amigo», de Keith Theriot e
«Morte com uma Seta», de H. Hondius.
Em tempo de balanços altura é de reconhecer o quão hipotecadas estão as nossas existências ao estatuto de impotentes da dor. Se na morte de um familiar ainda se aceita um alívio da contenção, raras vezes recenhecem os outros e reconhecemos nós
próprios a faculdade de chorar um amigo falecido. Refugiamo-nos nos tiques desajeitados que o convívio com outras relações do morto obriga, ainda assim gestos; que como gesto não gostamos de pensar a nossa voragem interior, a qual começa na abertura de horripilantes fendas no chão que pisamos e acaba na forçada melancolia.
Porque os sinais que emitimos "não podem" ser esses. Porque qualquer lamento mais expansivo é uma jeremíada fora do lugar, que só traz embaraço aos outros. É quando sentimos o ferrete desta perda que também não foi dissolvida no tempo nem gerada por opção do que perdemos, como essas outras mortes de amigos que emergem do afastamento e não originam lutas interiores que excedam o encolher de ombros oficial. Na morte física de um amigo Vemos a nossa pessoa coagida a fazer não sabemos o quê, mas, em todo o caso, a mostrar-se o menos possível. Enquanto que desejaríamos fazer não sei o quê, que fosse muito além do possível. Vivemos no decadente conflito que pensa ser a assunção da dor a exibição dela. Aquiles não se envergonhava de chorar Pátroclo. Mas vivia na Idade dos Heróis. Que não é a nossa.
De Fernando Lemos:
Quando morre um amigo
os telhados descem de nível
para fugirem tôrres de moscas
e o ar mastigar o nervo da língua
perdem-se as mãos nos bolsos
com vergonha
e o vento arranha o pente dentro dos cabelos moles
os animais engolem ninhos nos museus
e vão romper as estradas de couraças roídas
quando morre um amigo
caem por copos os sobejos da Natureza
os acordeões de barro ficam mesmo roucos
e suspendem-se no quarto com cheiro a farmácia
morre um amigo
e é um fim de espectáculo
rolam as solas de madeira sôbre a borracha
vêm os corvos urinar nos crânios dos deuses
estabelece-se uma enorme ventania
desenhando ladrilhos entre ossos
gritam mulheres deitando espelhos ao mar
enquanto as crianças mudam apenas de jardim:
é o ninguém baixar quando rolam as moedas
quando morre um amigo sinto vergonha
as bruxas de custódia em punho
dão horas particulares
e os cais motorizados fortificam-se
quando morre um amigo
ficam as nuvens de fora do alcance do azul
perco a condução
encosto o nariz na vitrina comercial
ocultando com o andaime as feridas
com que a vida me costuma vacinar
olho o céu quando morre um amigo
para criar um abismo entre dois pés
olho as paredes que são sempre quatro
e cabe-me a vida dentro de um copo
sobejos da Natureza
o frio vem tarde nas torneiras distantes
sempre que morre um amigo
sempre que morre um amigo
é um fim de espectáculo
Seguem também «Morte de um Amigo», de Keith Theriot e
«Morte com uma Seta», de H. Hondius.
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