Leitura Matinal -69
A morte - o momento em que nenhum homem é banal.
Força oculta, decerto, mas interiormente desvelável,
testemunhada pela deformação dos objectos-testemunhas
por nós presenciados entre os fogos assombrosos que
iluminam a passagem. Quando humanamente figurada, muito
mais fatalmente resoluta, no início, se encarnada numa
personagem feminina, como em Cocteau, do que quando é
masculinizada por Lang. E teremos de esperar por Bergman
para a relegar para a andrógina paciência de um jogo de
xadrez.
Mas serão as comunhões e as revelações que trazem as
imagens do fim, os nossos afectos e decorrentes instantes
de intensidade, salvação ou perdição?
De Herberto Hélder:
(a morte própria)
E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho,
enquanto a terra me queima os dedos e os dedos
entram no coração como a queimadura e o coração
propagado
é o incêndio na cabeça - às vezes
a cabeça não sabe que os pulmões arrastam
as labaredas do mundo como um grande buraco
de vozes: um rumor
de crepitações: uma força: uma rapidez
entre as formas - espelhos luzindo
atrás dos rostos: e tu levantas um braço:
trazes do fundo de tudo a raiz ainda viva de cada coisa:
uma constelação magnética entre os pés afastados
- eu vejo a tua morte no meu próprio movimento:
na chama correndo pela paisagem
fora, a paisagem
que ergues; que depois abandonas ao seu próprio espaço
de paisagem no tempo,
externa: atravessada por noites,
por luzes, transformações, ideias de quem vê,
pelos seus desenvolvimentos ocultos - vejo
que ressuscito no teu modo, essa espécie de estilo
ou energia,
quando casa e paisagem circulam como ilhas
numa torrente à volta
e então o que tocas é esse teu mesmo coração cruzado
por imagens luxuosas: o filme aceso:
membranas do corpo rutilando à passagem dos astros de mármore -
e o teu rosto arranca-se à sombria gravidade
do fundo
da beleza, dos poderes terrestres e o peso
de tanta profundidade: e um instante explode
essa estrela embrenhada na minha cabeça como
o coração se aprofunda, os dedos
puxam
as linhas de lume com que se cose a terra,
a fenda do seu sangue abismado - às vezes
o espelho é o meu próprio corpo,
a sua ferida: mas entre ilhas, sob
o que circula: espuma do ar, os cometas,
no sono sumptuoso
de animais
quase fixos, os rostos abertos aos raios dos nossos rostos
aos nossos dedos que lhes chegam ao meio do coração -
porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se
no teu movimento entre laços
de sangue, cabelos luzindo, as pedras
inclinadas para os teus lugares respiradores: a árvore
crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração
na minha morte, aqui, uma árvore
combustível
onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos
e velozes
entranhando em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado,
brilhando.
Força oculta, decerto, mas interiormente desvelável,
testemunhada pela deformação dos objectos-testemunhas
por nós presenciados entre os fogos assombrosos que
iluminam a passagem. Quando humanamente figurada, muito
mais fatalmente resoluta, no início, se encarnada numa
personagem feminina, como em Cocteau, do que quando é
masculinizada por Lang. E teremos de esperar por Bergman
para a relegar para a andrógina paciência de um jogo de
xadrez.
Mas serão as comunhões e as revelações que trazem as
imagens do fim, os nossos afectos e decorrentes instantes
de intensidade, salvação ou perdição?
De Herberto Hélder:
(a morte própria)
E estás algures, em ilhas, selada pelo teu próprio brilho,
enquanto a terra me queima os dedos e os dedos
entram no coração como a queimadura e o coração
propagado
é o incêndio na cabeça - às vezes
a cabeça não sabe que os pulmões arrastam
as labaredas do mundo como um grande buraco
de vozes: um rumor
de crepitações: uma força: uma rapidez
entre as formas - espelhos luzindo
atrás dos rostos: e tu levantas um braço:
trazes do fundo de tudo a raiz ainda viva de cada coisa:
uma constelação magnética entre os pés afastados
- eu vejo a tua morte no meu próprio movimento:
na chama correndo pela paisagem
fora, a paisagem
que ergues; que depois abandonas ao seu próprio espaço
de paisagem no tempo,
externa: atravessada por noites,
por luzes, transformações, ideias de quem vê,
pelos seus desenvolvimentos ocultos - vejo
que ressuscito no teu modo, essa espécie de estilo
ou energia,
quando casa e paisagem circulam como ilhas
numa torrente à volta
e então o que tocas é esse teu mesmo coração cruzado
por imagens luxuosas: o filme aceso:
membranas do corpo rutilando à passagem dos astros de mármore -
e o teu rosto arranca-se à sombria gravidade
do fundo
da beleza, dos poderes terrestres e o peso
de tanta profundidade: e um instante explode
essa estrela embrenhada na minha cabeça como
o coração se aprofunda, os dedos
puxam
as linhas de lume com que se cose a terra,
a fenda do seu sangue abismado - às vezes
o espelho é o meu próprio corpo,
a sua ferida: mas entre ilhas, sob
o que circula: espuma do ar, os cometas,
no sono sumptuoso
de animais
quase fixos, os rostos abertos aos raios dos nossos rostos
aos nossos dedos que lhes chegam ao meio do coração -
porque tudo anda dentro de mim, e o mundo
esgota-se
no teu movimento entre laços
de sangue, cabelos luzindo, as pedras
inclinadas para os teus lugares respiradores: a árvore
crescendo a cada paragem, com toda a tua inspiração
na minha morte, aqui, uma árvore
combustível
onde a fruta faísca: paraíso de espaços múltiplos
e velozes
entranhando em mim como se eu fosse a árvore
e tu fosses um espelho que a árvore despedaçasse pela sua força
e no espelho eu, como uma imagem, fosse despedaçado,
brilhando.
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